Saudades de Quelimane

Saudades de Quelimane

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Uma crônica

 

      Todos os dias eu me lembro de Quelimane, cidade de Moçambique onde estivemos em 2016. Quando chegamos caía um aguaceiro de realismo fantástico. Todos os dias uma imagem desse lugar me povoa a mente como um sinal luminoso me alertando para alguma coisa que me escapa. Todos os dias eu revejo o rio dos Bons Sinais, a praia de Zalala, a igreja e a mesquita. Por que me lembro tanto de tudo isso? Por que me estendo em divagações, em detalhes, em rememorações que alternam encantamento e tristeza? O que fui fazer em Quelimane? Segui uma intuição, uma fantasia, um estranho desejo de desconhecido saído do fundo de mim.

Há coisas que se calcificam no imaginário sem qualquer explicação. Na minha cabeça passa repentinamente um letreiro com as quatro recusas do filósofo e escritor Jean-Paul Sartre: o Nobel da literatura, uma cátedra no prestigioso Colégio da França, a Legião de Honra e ter suas obras completas na cobiçada coleção da “Pleiade”. Recusar o que todos desejam é para os fortes. Mas só pode recusar quem já obteve. A recusa não elimina a concessão. Nas ruas pobres de Quelimane eu pensava nos que não puderam recusar o que se abateu sobre eles, aqueles que foram transportados como escravos para a América.

Eu me lembro de um parágrafo inteiro da biografia poética que Pierre Michon fez de Jean-Arthur Rimbaud como filho de uma mãe aflita e eu traduzi: “Nesses poucos anos, portanto, ele recitava a sua poesia e ela o escutava, estou seguro. Presenteavam-se assim, como outros oferecem um buquê e recebem, depois, o beijo da mãe sob os olhos do pai que sorri; o pai também estava lá, eles ouviam na lengalenga o clarim perdido. Sim, esses dois incomensuráveis presentes em salas de jantar de Charleville roçavam-se um no outro, davam-se uma espécie de amor, através da língua suspensa no ar e ritmada. Porém, enquanto a língua, lá em cima, perto do lustre, fazia o seu ritual, eles mesmos, os corpos nas cadeiras, ou em pé e recitando apoiados numa mesa, os corpos aborreciam-se”. Por que me lembro disso com tão pouca memória?

Todos os dias eu penso em Quelimane e mergulho num nevoeiro de impressões, dúvidas, ternura, saudade e perplexidade. Eu me lembro do amigo Manecas comendo um peixe com as mãos e rindo de nossa insistência em usar os talhares. Eu me lembro da miséria em muitos bairros e da dignidade das pessoas. Eu me lembro de um grupo de mulheres pedindo para não fazermos uma foto que nos parecia linda:

– Somos pobres – disseram.

Eu me lembro das mulheres caminhando com enxadas nos ombros e lindos brincos nas orelhas. Eu me lembro de homens encostados em árvores, em frente a um cemitério, com o olhar perdido no horizonte e sorriso vagando nos lábios. Eu me lembro das ruas esburacadas. Em Moçambique, na ilha de Bazaruto, vi o mar mais bonito de todos que pude contemplar em minha existência errante. Um mar com rugosidade e luz de pérola barroca. Mas é de Quelimane que eu mais me recordo. Por que lembrei dessa cidade ao descer em Paris? Mistério do imaginário.

 

 

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