Saudades de Veneza

Saudades de Veneza

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Fui engolfado por uma onda de nostalgia. De repente, minha mão esquerda descansou sobre um grosso volume na estante: “51ª Mostra Internazionale d’Arte Cinematografica – Venezia, Lido – 1/12 settembre 1994”. É o catálogo de Festival de Cinema de Veneza, que cobri como correspondente na Europa, assim como cobri edições dos festivais de cinema de Berlim e de Cannes. As lembranças da juventude escorreram. Abri o pesado livro. Dentro dele encontrei duas folhas datilografadas na minha pequena Olivetti verde, que guardo em meu museu, com o título “Os prêmios das conciliações”. Passava-se todo o material por fax.

O fax foi uma ótima tecnologia. Passou tão rápido quanto minha juventude. Um parágrafo da minha matéria me deixou sonhador: “O último dia do Festival de Veneza foi marcado pela presença de Al Pacino, que, com Ken Loach e a roteirista italiana Suse Cecchi d’Amico, abocanhou um Leão de Ouro pela sua carreira. Divertido, Al Pacino fez gênero na entrevista coletiva, declarou a sua paixão por Shakespeare, fonte do seu próximo filme, e passou por um belo constrangimento. Perguntaram-lhe se conhecia Suse e Kean Loach. Nunca ouvira falar. Gillo Pentecorvo, diretor da Mostra, apresentou o balanço da 51ª edição: excesso de filmes, pouca interação com o público e diversidade. Os jornalistas acrescentaram: a maioria das obras em competição era fraca”. Venceu “Antes da chuva”, do macedônio Milcho Manchevski.

Eu estava lá. Usava barba rala. Tinha 32 anos. Morava em Paris. Estudava na Sorbonne. Adorava cinema. Viajava sem parar. Lia Novo Romance na língua original. Admirava as cores do outono europeu. Ia ao Louvre e ao Museu d’Orsay todo mês. Acreditava no futuro, que me parecia não só distante quanto indefinível. Fiz uma longa entrevista com Mario Vargas Llosa, membro do júri presidido por David Lynch. Disse a Llosa que eu pretendia ser escritor. Ele me desejou boa sorte. Contei-lhe que relia “Conversa na catedral” todo ano. Ele sorriu. Observou que o mais importante é sempre acreditar no que se escreve.

Llosa virou prêmio Nobel da literatura e nunca mais tentou ser presidente do Peru. Gillo Pentecorvo, diretor do consagrado “A batalha de Argel”, morreu em 2006. David Lynch continua na ativa. Kean Loach nunca foi tão rebelde e cult. Em 2016, emplacou “Eu, Daniel Blake”. Suse Cecchi d’Amico faleceu em 2010. Al Pacino está com 78 anos. O Festival de Cinema de Veneza vai para a sua 86ª edição. Onde anda Milcho Manchevski? No facebook. Veneza brilha como se fosse um filme.

Fiquei horas folheando o catálogo como que em busca de alguma coisa secreta, uma imagem, revendo fotos de filmes, lembrando daqueles dias que terminaram com uma hora lagarteando ao sol de Veneza. Tudo era simples, tão natural, tão disponível. Eu sentia saudades do Brasil. Fechei o livro com as minhas duas folhas datilografadas dentro dele. Mudei a sua posição na estante. Preparei tudo para que daqui a alguns anos eu me surpreenda novamente redescobrindo esses vestígios arqueológicos dos meus belos anos na Europa. Como estarei então?

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