Seleção joga para trás

Seleção joga para trás

Jogadores recuam e vão jogar Copa América

publicidade

 

      François era tcheco. O pai dele era apaixonado por Voltaire. Eu o conheci em Berlim, em 1991, no Instituto Goethe. François tinha uma pergunta para tudo: “A quem interessa isso?” Falava-se de literatura. François disparava: “A quem interessa ler isso?” A nossa comunicação era numa mistura de línguas. Pensei nele ontem. Por onde andará? A quem interessa que eu pense nele? Ao assunto que vou tratar aqui. A quem interessa realizar a Copa América neste ano de pandemia? Se o torneio não acontecer, quem perde? O bom senso manda não fazer. A quem interessa recusar o bom senso? A quem interessa fazer correr riscos?

      Nesta terça-feira podíamos ter algo histórico: os jogadores da seleção brasileira declararem-se em greve. Recusarem-se a jogar a Copa América. Se tivessem o apoio do técnico Tite, o que não é improvável, este poderia continuar no cargo? O presidente da CBF não está apto a demiti-lo. Foi afastado do seu posto por assédio sexual e moral à sua secretária. Não seria o caso de sair por conta própria. Emprego não lhe faltaria. O ambiente do futebol costuma ser de pouca participação nas coisas da sociedade. Ricos, famosos e talentosos, com “capital” para autonomia, jogadores parecem ter medo de tudo e vivem calados. Talvez sejam, como se dizia noutra época, simplesmente alienados.

      Desta vez, porém, estão mobilizados. Casemiro é o líder. A Copa América dá muito dinheiro em prêmios. Quem precisa disso neste momento? O torneio tem caráter comemorativo. O que se tem para comemorar agora? Certo, o futebol deveria estar parado, mas continua. O que se ganha acrescentando mais uma competição? Poderia acontecer nesta terça, depois do jogo do Brasil pelas eliminatórias da Copa do Mundo, a coletiva mais bombástica da história do futebol brasileiro. O jogo virou detalhe. Que passe rápido para se chegar ao prato principal. Estaria Tite com as horas contadas? Haveria um trabalho político de bastidores para colocar Renato Portaluppi no seu lugar?

      Há dias que o Brasil parece ter voltado ao começo de 1964. Hoje, lembra 1970. O comunista João Saldanha (ele não escondia) foi demitido antes da Copa do México. A versão mais difundida diz que o ditador Médici queria Dario convocado. Um documentário recente mostra que Saldanha queria tirar Pelé da equipe para jogar mais à europeia. Os jogadores não aceitaram. Parece que os bombeiros estão agindo e que o presidente interino da CBF, coronel Nunes, quer apagar o fogo. De que jeito? Cancelando a participação brasileira na Copa América? Tite sabe esconder o jogo. Não dá uma opinião em público que possa dar rolo.

      Quanto da nossa energia psíquica investimos nesses ídolos de ocasião! Eles poderiam jogar mais, dar mais espetáculo e surpreender como cidadãos. O que espero deles hoje? Que respondam ao meu amigo François, que nunca mais vi: a quem interessa essa Copa América? Quem sabe, recusando-se a jogar, reconquistassem uma parte dos brasileiros que se desencantou com a seleção. Noticia-se, porém, que a rebelião já acabou e que todos dirão sim à Copa América. Pois é.

O novo modelo de jogo era fogo de palha.


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895