Sempre estive fora do lugar

Sempre estive fora do lugar

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Dizem que a gente sai de um lugar, o seu lugar, o lugar de infância, o lugar da memória afetiva e encantada, mas o lugar não sai da gente. A elite branca diz que o jogador de futebol negro sai da favela, mas que a favela não sai dele. Por que sairia? As lembranças são mais fortes do que os símbolos de distinção social. Não há luta de classes nos desvãos do imaginário. Se eu fosse dicionarista, anotaria uma nova definição de lugar: onde se passou a infância.

Eu saí de Palomas, mas Palomas não sai de mim.

A questão, porém, é outra. Basta ouvir a música de Roberto Carlos, aquela que fala “eu voltei/porque aqui é meu lugar”, para entender. O lugar pode estar dentro da gente, mas não estar mais no seu lugar. Como assim? Um lugar fora do lugar? Lembra a península ibérica do livro de José Saramago, A jangada de pedra, que se desprendeu do continente.

Vou tentar explicar essa sensação que acomete muitos de nós na vida.

Passamos anos lembrando de um lugar, do nosso lugar, um lugar sagrado que nos arranca lágrimas furtivas no meio de uma tarde com certa luz melancólica, obrigando-nos a mentir, “um cisco, que coisa”, ou a dissimular. Um dia tomamos coragem e vamos até lá. É a viagem de volta. Um longo percurso de retorno, que pode até ser de poucos quilômetros, ao encontro do que fomos e nunca mais voltaremos a ser. Viajamos para o passado em busca do futuro. O lugar está intacto em nosso imaginário. Uma rua, uma praça, uma árvore, o primeiro beijo, um gol de placa na manhã de chuva, um sorriso numa noite de lua, uma paisagem, cadeiras na calçada, campos, cavalos, pandorgas no céu azul, a máquina vermelha puxando dezenas de vagões numa curva, o amanhecer no verão de um ano inesquecível de mudança e de adeus.

Aí a gente chega no lugar e ele não é mais o mesmo. Falta alguma coisa. Falta uma casa amarela, um árvore, um jacarandá, até uma esquina (homens são capazes de mudar tudo), uma praça triangular, o trem resfolegando na curva antes de se perder numa imensidão verde. Falta a aura, o halo, a magia, o beijo, risadas em cascata. O lugar tem o mesmo nome, situa-se no mesmo ponto geográfico, na mesma latitude, guarda alguma semelhanças com o que foi, certo ar, uma atmosfera, quase nos confunde, mas já não é mais o mesmo. Dá uma dor, uma tristeza fina como uma saudade. Talvez isso seja a morte. A morte da alma.

Deveria ser proibido alterar o lugar de infância de alguém.

O pior não é a gente sair do lugar. Nem mesmo o lugar não sair da gente. O pior é o lugar da gente deixar de ser o que era. Encontrei um amigo, depois de muitos anos, que me contou: “Roubaram a esquina do meu lugar”. Demorei a compreender. Depois, tive um clarão. Pessoas práticas não se preocupam com isso. A força de um lugar, no entanto, aparece no desejo de quase todo mundo de ser enterrado no seu lugar. Voltar, mesmo sem poder ver, para esse lugar do qual não se pode sair. O lugar é uma luz fugidia, um enquadramento. Dizem que quando o nosso lugar deixar de ser o que era para nós, torna-se o lugar de outro. Tomara.

Um lugar nunca pode se tornar um deserto.

Um lugar nunca pode ser tornar uma república das empreiteiras pagadoras de propina, dos banqueiros vorazes, dos políticos corruptos, da justiça seletiva e do cinismo generalizado.

Um lugar precisa não pode ser soterrado pela lama da ganância.

Um lugar é como a infância: uma utopia.

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