Ser escritor negro no Brasil

Ser escritor negro no Brasil

Pequeno espólio do mal, de Luiz Maurício Azevedo, merecia prêmios

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 O livro mais incontornável e relevante, publicado por um escritor gaúcho nos últimos cinco anos, foi “Pequeno espólio do mal”, de Luiz Maurício Azevedo (Figura de Linguagem). Se eu só pudesse escolher um livro de gaúcho nesse período para salvar de uma catástrofe nacional, seria esse. Eu lhe daria todos os principais prêmios disponíveis. Na França, Luiz Maurício teria sido certamente premiado e provocado escândalo. Os franceses têm esse sentido da urgência literária, do impacto, da relevância e do dedo na ferida das chagas sociais e existenciais. No Brasil, Michel Houellebecq, o melhor escritor do mundo na atualidade, não receberia um só prêmio. Michel desafia os cânones e parâmetros admitidos. Não faz literatura. Comenta a vida. Atropela as estéticas dominantes.

      Houellebecq comete sete pecados capitais: escreve limpidamente, vende muito, não inventa palavras, não pratica neologismos, usa a linguagem para comunicar, tem aguçado o senso de urgência e de relevância e explora os temas mais sensíveis e polêmicos de cada momento. Não enfeita e não alivia. Além disso, é um homem feio, depressivo e ácido. Claro que ninguém admite levar em consideração esses aspectos pessoais na avaliação da obra do autor de “Extensão do domínio da luta”, “Partículas elementares” e “Serotonina”. Muitas vezes se confunde a visão dos seus personagens com a do autor. A literatura francesa hoje é ele. Ninguém a renovou tanto em tão pouco tempo. Nenhum europeu chama mais atenção. É claro que isso o faz alvo da inveja.

      Luiz Maurício é um cara simpático e de bem com a vida. Negro, culto e implacável com os padrões e modismos literários dominantes. Será que isso pesa contra ele? Maurício não faz parte de qualquer clube ou panelinha. Cavaleiro solitário, estudou nos Estados Unidos, fez doutorado em São Paulo, ganha duramente a vida como professor de ensino médio no Rio Grande do Sul. Sem alcoolismo e sem loucura, tem algo de Lima Barreto em Luiz Maurício. Conceição Evaristo, grande escritora negra brasileira, foi preterida pela Academia Brasileira de Letras, que preferiu o cineasta Cacá Diegues. O clube dos imortais brancos rejeitou a autora negra de talento e acolheu o candidato branco de ótimos filmes e nenhum grande livro.

      Falta no Brasil a percepção do acontecimento, daquilo que por estar no ar do tempo se conecta com a vida. Reina a separação. O sujeito não pensa: vou excluir esse cara por ele ser negro. É mais complexo. Não enxerga, porém, no imaginário exposto sinais que o entusiasmem. Esses sinais, captados pelo inconsciente, dizem respeito a um universo existencial hegemônico. A lente branca e modernista só enxerga o branco modernista. As exceções a tranquilizam e justificam. Machado de Assis branqueou-se e foi branqueado. Lima Barreto pagou o preço de reivindicar a sua negritude. Houellebecq carrega o peso da sua feiura e da sua ironia. Luiz Maurício custa mais a ser celebrado por ser houellebequianamente irredutível inclusive na clareza da sua forma? A arte não pode ser negra ou branca? Por enquanto, por mera coincidência, ela tem sido branca.


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