Sob o céu da Bahia

Sob o céu da Bahia

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A fanfarra entrou no pátio, ou no jardim de coqueiros engalanados, entre os convidados, ou hóspedes, exatamente quando estouraram os primeiros fogos de artifício no céu coalhado de estrelas. Eram quatro negros fortes vestidos de branco. Dois altos e dois baixos e atarracados. Percussão e metal espalhando de um adeus ao ano velho a velhas marchinhas de carnaval depois de uma hora de músicas em inglês levemente alteradas no volume por um DJ de dedos ágeis e gostos estranhos para ouvidos nacionalistas. As pessoas se abraçavam, conhecidos e desconhecidos, com uma alegria genuína atrelada à sincronia dos fogos na areia, da fanfarra no gramado e do horário “normal” desatrelado da hora de verão de Brasília.

– Que seja um belo ano – disse um homem atrás de mim.

– Tomara – enfatizou a mulher que o acompanhava.

O mar rugia lá longe, depois de uma quase duna na larga faixa de areia que separava a festa do mar aberto de ondas agitadas. Os fogos de artifício, que pareciam ter surgido do nada, sem que se tivesse visto qualquer preparação ou instalação ao longo da tarde, espocaram no céu da Bahia por uma dezena de minutos enquanto a bandinha espalhava a sua alegria nostálgica e contagiante. O estouro das rolhas das garrafas de espumante pontuava o brilho dos fogos e a força da percussão. O ano se despedia, ou era despedido, de maneira barroca, brejeira, carnavalesca.

– Será que vai dar certo? – perguntou uma senhora ao marido.

– Melhor que dê. Estamos todos no mesmo barco.

A fanfarra foi ganhando fôlego, passando entre as pessoas, arrastando foliões e, passados dez minutos do ano novo, já puxava um trenzinho de gente de branco entoando velhos refrãos. O negro baixo e retaco do metal parecia não mexer um músculo enquanto soprava seu instrumento por minutos a fio despertando alegrias infantis ou lembranças de anos velhos de felicidade. A percussão ganhou um ritmo acelerado, como que escavando em memórias ancestrais ou simplesmente afetivas, e não havia mais razão para se conter. Tudo e todos se misturavam à luz das estrelas.

Meia hora depois a fanfarra ainda sacudia os convivas em arrancos de alegria sincopada. No palco, as estrelas da banda contratada para o evento impacientavam-se. A bandinha dos quatro roubara-lhes a cena. Finalmente, num arroubo, o cantor fez o sinal aos colegas e as caixas de som encheram-se de notas e palavras abafando as velhas marchinhas. Os quatro negros foram calando seus instrumentos e, enfim, retiraram-se para um canto sob coqueiros, próximos da areia, onde ficaram fumando em silêncio. O público dispersou-se ou voltou para as mesas onde garrafas de espumante esperavam.

Sentamos junto aos quatro músicos, protegidos pela noite, e ficamos olhando as estrelas e a areia onde fileiras de pessoas de branco escalavam o pequeno monte arenoso à luz de lanternas e de celulares em direção ao mar. Uns iam. Outros já voltavam. Eram filas de pirilampos. Foram minutos de intensa paz. Daria para amanhecer ali. Soprava uma brisa gostosa. O tempo só não estava congelado por causa do intenso calor. Feliz 2019!

– Amanhã tem a posse – disse uma mulher.


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