Sonatas para sobreviver

Sonatas para sobreviver

Beethoven salva do tédio e do cansaço

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      Jovem, eu queria vencer as discussões. Agora, só quero não perdê-las. Ou seja, participar. Sim, eu ouço as sonatas de Beethoven para sobreviver. Gosto mais de sonatas que de sinfonias. Parecem-me mais leves. Cabem melhor na estreiteza do meu coração abarrotado.

Em “Acordei negro” (2018), meu personagem diz: “Ouço Chico Buarque antes de sair. Durante muitos anos, não ouvi música. Andava apressado demais para perder tempo escolhendo discos. Depois que adoeci, porém, não passo um minuto sozinho sem ouvir alguma coisa. A música me acalma, especialmente o jazz e a Bossa Nova. Chego a andar na rua com enormes fones amarelos nos ouvidos. Gosto desse ar de ET que chama a atenção de senhores com aparência sensata. Uma parte da canção de Chico Buarque faz um caminho estranho no meu cérebro. Vai e volta como se fosse uma pasta num liquidificador turbinado”.

Em “Solo” (2008): “A resposta foi imediata e cristalina como uma oração da manhã ou como uma sonata de Beethoven enquanto chove lá fora, com o perdão dessa imagem brega-erudita inevitável: na igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma. Esse seria o meu destino. São Pedro me chamava. Por quê? Eu continuava sem ter a menor ideia”.

Em “Nau frágil” (2003) era tudo bem mais triste e com uma música chorosa e lânguida: “Uma música árabe, tão triste quanto comprida, inundava o ônibus de preguiça. Toulali, explicou o motorista. Bom, bom. Melhor ainda Harraz Aouicha. Ok. Zagora estava longe. Gil tentou lembrar-se das casas silenciosas, encravadas nas rochas do Alto Atlas, no caminho de Marrakech para Ouarzazate. Nada mais desértico e melancólico do que aquelas habitações de costas para o sol. Cemitérios com pequenas aberturas onde moravam seres invisíveis. Leito berbere de vidas escondidas no ventre da natureza majestosa”. Música ocre.

Nunca crônica de “A orquídea e o serial-killer” (2012), radicalizei num falso diálogo que era verdadeiro no imaginário:

“– Rock ou MPB?

– MPB.

– Beatles, Rolling Stones ou The Jordans?

– The Jordans.

– Janis Joplin ou Celly Campello?

– Celly Campello.

– José Mauro de Vasconcelos ou Carlos Castañeda?

– “Meu pé de laranja lima”.

– Beethoven ou José Mendes?

– Bráulio ou Sérgio?

– Sérgio.

– Emilinha Borba ou Marlene?

– Guimarães Rosa ou Mário Palmério?”

Beethoven nasceu há 250 anos. As suas sonatas são meu fundo musical. Quando eu penso em todos os que me fizeram mal, ouço algumas das 32 sonatas para piano que Beethoven escreveu entre 1795 e 1822 e esqueço tudo. As minhas preferidas variam, mas quase sempre são estas: Opus 57, Piano Sonata No. 23 in F minor ("Appassionata", 1805), Piano Sonata No. 17 in D minor ("Tempest", 1802), Opus 13, Piano Sonata No. 8 in C minor ("Pathétique", 1798). Neste ano da peste, tenho ouvido muito Beethoven. É meu calmante na enormidade das tardes de solidão.

Em “Ela nem me disse adeus” (2003), é estranho: “A sala continua suavemente inundada pela música de Debussy. O som, baixo, muito baixo, incrusta-se no ar como a pegada de uma gaivota, como uma sombra na pasmaceira da tarde: Três imagens — O mar. Lúria gosta daquilo. Felipe prefere coisas mais arrebatadas. Não deixa de ser estranho, patético, ter fundo musical erudito para um assalto do mais baixo nível. Os títulos evocam uma pura nostalgia que não se encontra ali — rondas de primavera, jogos de ondas, diálogos de vento e do mar...”

O leitor pode objetar que todo romance tem música. Provavelmente. O que estou contando aqui é como a música me afeta como pessoa e como escritor. É uma pegada nostálgica e um tanto aveludada. Beethoven mesmo quando não é ele. Mesmo em “Adiós, Baby (2003), novela policial, o tom é musicalmente suave: “O delegado dormiu três horas. Sem ir ao banheiro. Despertou com o relógio repetindo uma música de Tom Jobim. Arrastou-se até a sala. Nem sinal de Irene. No porta-retratos, uma foto dela, tão esbelta e recatada quanto uma avestruz de ressaca. Os olhos eram os mesmos! Manhãs foi até a janela: o sol rachava, mas a rua tinha, definitivamente, deixado de ser um aeroporto particular de paquidermes. Cachorrinhos mijavam nos postes”.

*

A poesia é uma história em verso,

De um jornal apenas o inverso,

Embora cristalina e objetiva

Como uma manchete esportiva.

O poeta é o cara da esquina,

Vendedor de badulaques, bina,

Malandro, enganador, faceiro.

Ganha cada dia com muito pouco,

Bancando isto, aquilo, sapateiro

Bicheiro, barbeiro, louco,

Guardador de carros, trambiqueiro.

Mas o poeta que é mesmo poeta,

Olha a morte nos seus olhos,

Como o goleiro que antecipa o tiro.

Então, é só correr para o abraço,

Até lhe saltarem as tripas.

 


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