Spencer Leitman comenta História Regional da Infâmia (2)

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Spencer Leitman comenta História Regional da Infâmia (2)


Os decretos de confisco legalizaram a corrupção predatória, que ironicamente permitiu a continuação da guerra enquanto houve bandos para serem explorados. O tesouro farrapo e os coronéis da campanha assumiram riscos econômicos, mas eles tinham vantagens de poder, informação e antecipação que os outros não dispunham. Centenas de milhares de cabeças de gado eram levadas a Montevidéu e às charquedas no território imperial.
Colisões, corrupção e acordos com o inimigo não eram de uma mão só.
Essa era uma guerra e poderia se ganhar dinheiro.
No caso dos escravos, os farrapos eram cuidadosos em utilizar essa gente em suas forças. Lanceiros negros e a infantaria eram segregados das tropas brancas, a maioria dos quais originalmente serviu na Guarda nacional. Esses libertos tinham agora novos donos na forma de oficiais brancos. Os libertos não eram nem cidadãos nem realmente livres, e podiam retornar à situação de propriedade. Os que não se destinavam ao exército serviam nos oficinas do governo republicano para ajudar a sustentar a guerra. Eles trabalhavam como rastreadores, coletores de erva, seladores e construtores de lanças, ferreiros entre outras atividades.
Machado da Silva nos conta o que transpirou em Porongos e depois sobre tudo aquilo que a documentação nos traz até hoje; e o que aconteceu com todos os que simplesmente mudaram de lugar de trabalho, mas não a sua condição. O conteúdo social e político da Farroupilha esteve sempre subordinado às necessidades e à ideologia dos seus comandantes. Os coronéis e tenente-coronéis tinham um objetivo principal, manter a ordem social. Essa preocupação derivou dos imperativos de regime de classes e das ideias que eles tinham sobre os pobres, a maioria deles escravos, que podiam se perder. Eles confiavam somente em si próprios e em seus familiares. Francisco Sá Brito entendeu isso numa nota a Antonio de Sousa Netto, de um republicano a outro. Sá Brito entendeu que qualquer mudança no governo riograndense existente deveria se originar de uma convenção constitucional; mas, naquele momento, isso poderia vir pelas mãos do exército, que era dominado pelos estancieiros fronteiriços.
Esses barões do gado eram também proprietários de escravos que preferiam manter seus próprios escravos fora da luta. Portanto, eles impressionavam os escravos das estâncias confiscadas e charqueadas com a promessa de liberdade. Essa pretensa liberdade foi negada em Porongos e obliterou a paz.
O massacre planejado em Porongos devastou Bento Gonçalves. Para Bento Gonçalves uma das principais demandas nas conversações de conciliação com os emissários do Rio era a liberdade incondicional para os libertos sob as armas republicanas. Esse era um ponto-chave para o governo, que não queria recompensar o que era um tipo de insurreição de escravos. Talvez Bento Gonçalves e José Mariano de Mattos, mais do que quaisquer outros no lado farroupilha, tenham honrado as contribuições dos negros à causa. Militarmente eles compreenderam o valor do poder de fogo concentrado da infantaria e o uso das tropas para tomar posse do território. Antes de 14 de novembro, Bento Gonçalves tinha requisitado do Gen. David Canabarro a transferência de tropas de seu comando para onde elas poderiam ser melhor utilizadas para levantar o moral e ‘chamar a atenção a Caxias para outra parte... Mas o Comandante em chefe do exército recusou. Menos de 12 dias depois as tropas negras de infantaria de Cannabarro foram inexplicavelmente chacinadas por Chico Pedro sob as ordens diretas de Caxias. Machado da Silva reconta em detalhes o famoso documento, que clamava em poupar o sangue dos brancos e índios, da mesma forma que fizeram outros proeminentes historiadores riograndeses modernos. Depois de Porongos, escrevendo a um amigo, Bento Gonçalve estava inflamado: “Quem tal coisa esperaria de uma massa de infantaria cujos caminhos indispensáveis por onde tinha de avançar eram tão visíveis que só poderiam ser ignorados por quem não quisesse ver nem ouvir, ou por quem só quisesse ouvir a traidores talvez comprados pelo inimigo!!!”
Teixeira Nunes, o líder branco dos lanceiros negros, morreria logo depois num ataque separado. No entanto, de acordo com o tenente coronel José Gomes Portinho, corrigindo um relato do cronista imperial, Teixeira caiu prisioneiro e foi sumariamente eliminado. O último defensor dos farrapos negros foi convenientemente assassinado, eliminado para evitar qualquer interferência política futura. O problema político, a disposição dos farrapos negros, tanto para os rebeldes como para o governo imperial, tinha sido resolvido.
A compensação imperial seguiu-se ao término da guerra. A despeito das reclamações sobre pagamentos secretos, os rebeldes retornaram para reconstruir suas vidas e rebanhos. A maioria sobreviveu à guerra intacto. Eles tinham seus ranchos, conexões familiares, títulos militares, e ainda eram considerados pessoas de qualidade. Caxias tinha sido generoso e esses ex-rebeldes formariam as tropas riograndenses nas guerras seguintes contra a Argentina e Paraguai.
O destino real e a destinação final das tropas negras passaram despercebidas e escondidas da discussão pública. De maneira perversa, a Paz de Ponche Verde tinha imortalizado a identidade democrática dos rebeldes com o bem divulgado artigo quarto reconhecendo a liberdade dos farrapos negros em armas. Havia pouco ou quase nenhuma preocupação sobre as dimensões da liberdade dos negros nas décadas seguintes.
Na década de 1880, o movimento começou a controlar a narrativa promovendo a coragem imortal dos rebeldes gaúchos que tinham lutado corajosamente por sua liberdade e por seus irmãos negros em armas numa guerra que eles mereciam vencer. Os estancieiros riograndenses, de ambos os lados, continuaram suas práticas escravagistas até a emancipação. No Texas, os rebeldes republicanos tinham ganho sua independência do México, em 1845, criando uma constituição que colocou a escravidão como uma relíquia – negando cidadania aos afro-americanos e tornando ilegal aos proprietários de escravos emancipar até mesmo seus próprios escravos.
Esses texanos, como seus contemporâneos no outro lado do hemisfério, agiram para preservar seu tradicional estilo de vida igualando liberdade com o direito a ter propriedade em escravos em vez do direito humano à liberdade.
Machado da Silva nos deu um importante livro de alerta que demonstra de forma convincente que muitos dos farrapos eram de fato somente homens de seu tempo. Às vezes, mesmo nas difíceis condições da guerra e revolução, novas oportunidades e ideais surgem. Mas, no caso dos farrapos negros, os líderes farrapos não modificariam suas crenças fundamentais. No fim eles sucumbiram a Caxias e ao Império, às suas baionetas e ouro. Os farrapos negros que tinham lutado lado deles agora tinham desaparecido de seus pensamentos. Depois da sua morte, com a leitura de seu testamento, soube-se que entre os bens de Bento Gonçalves havia mais de 50 escravos.
Spencer L. Leitman
4 de dezembro de 2010
(traduzido para o português por Jacques Wainberg)




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