Stacey e Kazuo

Stacey e Kazuo

publicidade

Hotel de gelo

 

      O prêmio Nobel da literatura de 2017 é um japonês com educação e biografia britânicas. Kazuo Ishiguro de japonês só tem a certidão de nascimento e a aparência. Ele é muito conhecido especialmente por dois livros: “Os vestígios do dia” e “Não me abandone jamais”. Tentei os dois e não fui muito longe. Tem obras que não me pegam. A falha é com certeza minha. Em compensação, li três vezes de cabo a rabo “Ulisses”, de James Joyce”, considerado intransponível. A primeira experiência foi quando eu tinha 20 anos. Fui passar férias em Palomas. Levei só o volume de Joyce. Temia não passar de umas cinquenta páginas. Li a primeira vez. Pouco entendi. Não havia muito o que fazer. Li de novo.

Passados 25 anos, arrisquei a terceira leitura. Foi muito mais lento, mais produtivo, mas não necessariamente mais esclarecedor. É incrível como temos pressa e certezas quando somos jovens. Em todo caso, foi lindo. A literatura não precisa ser pedagógica. Ou tem sua pedagogia do mistério e do enigma. Tentarei novamente ler Ishiguro. Quem sabe funcione. Tenho de fazer a mesma coisa com Philip Roth. Tentei cinco livros dele. Não terminei um só. Por quê? Não sei. Um fã de Roth me definiu com uma palavra: “Imbecil”. É uma hipótese que considero cada vez mais para ser explorada e aprofundada. Um amigo gremista arriscou uma explicação mais ousada: Roth é um nome que me traz más lembranças. A piada é bem razoável, mas não se sustenta.

Kazuo Ishiguro fez letras para Stacey Kent. Ela tem uma voz límpida e maravilhosa. É uma das minhas cantoras preferidas. Bossa Nova em inglês com uma voz que lembra vagamente o arrastado sinuoso de eternas meninas das mulheres francesas. Uma das canções se chama “Ice hotel”. Começa assim: “Vamos eu e você ir embora para o Hotel de Gelo/O Caribe está tudo reservado e é só assim”. A oposição entre o gelo e o Caribe acende em mim muitas divagações. Um escritor, de prosa, poesia ou letras de música, precisa mobilizar o nosso imaginário, que é o nosso ponto G. Espero não estar sendo indecente.

Li “Ulisses” nas duas primeiras vezes dentro de uma carreta de boi, deitado num pelego, à sombra de um frondoso cinamomo. Será que isso diz alguma coisa sobre minha percepção singular da arte? A terceira vez já foi uma leitura urbana. Kazuo Ishiguro tem um texto cristalino como se vê em “O gigante enterrado”: “Você teria que procurar muito tempo para encontrar algo parecido com as veredas sinuosas ou os prados tranquilos pelos quais a Inglaterra mais tarde se tornaria célebre. Em vez disso, o que havia eram quilômetros de terra desolada e inculta; por todo lado, trilhas toscas que atravessavam colinas escarpadas ou charnecas áridas”. Por que não me apaixono por sua prosa como me acontece com a de Michel Houellebecq?

A paixão, inclusive pela arte, é o grande mistério: não pode ser imposta. Absorvo arte de maneira epidérmica. Deixo a emoção falar antes da razão e da educação. Sigo a minha sensibilidade, que tem caminhos próprios e jamais, na sua humildade, pretende ditar regras.

 

 

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895