Tempo de mudança

Tempo de mudança

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Então eu fiz aniversário e tudo mudou. Uma camada de cinzas cobriu o que eu vinha fazendo como se, de repente, nevasse no sertão. Eu tinha cruzado a vida até ali com a certeza de colher cerejas onde só havia números e metas a atingir. Eu me lembrava a cada dia de um passado muito distante, um país de ficção chamado infância, que me servia de parâmetro para medir o que eu nunca mais deveria ser. O engraçado é que eu não conseguia saber se havia sido feliz ou se estivera sempre à espera do grande salto para frente que me converteria noutro homem, outro ser, outra identidade, um “eu” a ser construído com cinzel, máquina de calcular e adestramento funcional.

Perseguido por esse passado infatigável, que eu conseguia afastar com um aumento permanente de tarefas para enganar o cérebro, esse ardiloso Big Brother silencioso, eu navegava em direção ao futuro com uma determinação feroz: nunca parar, jamais discutir os critérios adotados até ali para justificar minhas escolhas, tomar por natural tudo o que a vida me oferecera a cada bifurcação aleatória. Eu sonhava cada vez mais com cenários exóticos: pessegueiros em flor, regatos luzindo de peixinhos coloridos, maracujás brilhando ao sol, pássaros alertando as manhãs com seus cantos hipnotizantes, cavalos atravessando rios de águas caudalosas, pandorgas coalhando os céus de gomos coloridos, frutas adoçando as tardes com seus aromas e cores, aragens trazendo perfumes longínquos para incendiar a imaginação.

Até ali eu tinha sido razão e perseverança, estratégia e planejamento, adaptação e resiliência, couraça e resultado. Quantas metas alcançadas, quanto objetivos atingidos, quantos troféus armazenados, quantas horas trabalhadas, quantos voos realizados, quantos dias sacrificados no altar da produção, essa hidra implacável e insaciável. Um software contabilizava meus feitos segundo a segundo e me comunicava quando eu vencia uma nova barreira e me alçava a um novo patamar. Era infinita a alegria do algoritmo. Eu até me comovia. Nos deslocamentos, ouvia Beethoven e Dvorak, mas me emocionava de modo preocupante quando ouvia crianças cantarem antigas cantigas, “se essa rua fosse minha...” Sim, ainda havia crianças e cantigas de roda.

O que não havia mais era roda. Finalmente nos deslocávamos, nas raras vezes em que isso se fazia necessário, pelo ar. Nas nuvens, eu me lembrava de quintais, de festas juninas, de galos cantores, do Natal com sapatos nas portas e janelas sempre abertas, salvo quando assaltadas pelo inverno, de bolinhas de gude engolindo nossos olhares vidrados na curvatura do colorido em espiral e das intensas alegrias de rua, aqueles risos, aquelas correrias, aqueles corpos suados, aquelas noites transfiguradas pela existência ao ar livre, aquela sensação de liberdade por não ser e não ter de ser o que quer que fosse. A vida era inútil. Só servia para ser vivida até não ser mais.

Foi então, enregelado numa sala climatizada, que eu me disse:

Daqui onde me encontro, sob coqueiros,

Eu vejo esse extenso e curvo mar azul

Não é, porém, o azul do mar que eu vejo,

Mas um edifício suspenso no ar.

Aqui, destes velhos outeiros,

As nuvens escuras que agora eu vejo

São apenas respirações artificiais

De vidas vividas sem comedimento.

Eu posso soprar ao vento auréolas

Em carretéis de inflar linhas e velas,

Mas nenhuma delas, azuis, amarelas

Me fará movimentar esses barcos

Acotovelados em longos arcos

Na dobradura rubra do sol.

Então, recuo como um caranguejo.

Eu me lembro que essa forma de expressão causou estranheza. Qual o seu público-alvo? Qual a sua capacidade de convencimento? Qual o seu foco? Que resultado poderia gerar? Qual a sua utilidade social? Seria ético usar palavras públicas para fins tão privados e ambíguos? Fiquei malvisto. Fui objeto de sindicâncias. Tive de fazer autocrítica. Diante do Conselho de Administração, que adotara o centralismo democrático de resultados como método de solução de conflitos, eu reneguei esses versos. Aleguei covardemente que só podia ser um desvio de conduta competitiva provocado pela ingestão de um ansiolítico.

– Ainda se vendesse – sentenciara um colega.

Vivíamos no pós-trabalho e na pós-utopia. As máquinas faziam tudo por nós e melhor do que nós. Mas a ideologia produtivista continuava a nos reger. Na falta de outro Norte, continuávamos a viver para o lucro e para o desempenho. Ser melhor do que o vizinho era o sentido da vida. Nunca fomos tão competitivos como quando a competição se tornou anacrônica. Então fiz aniversário e senti nevar no sertão. Clandestinamente, correndo perigo de prisão, passei a escutar uma velha canção: “Ê, ô, ô, vida de gado/Povo marcado, ê!/Povo feliz!”

 

 

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