Tempos líquidos?

Tempos líquidos?

Há constância no fluxo, a precarização

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      Um polonês, que passou boa parte da vida radicado na Inglaterra, Zygmunt Bauman, popularizou a ideia de “relações líquidas”. Nos tempos que correm, e como correm, tudo seria líquido e incerto: a modernidade, o amor, os vínculos. Em português sonante, tudo passa rápido. Nu linguagem do próprio Bauman, “as relações escorrem por entre os dedos". A ideia pegou. Não era, porém, nova. Em 1982, o americano Marshall Berman publicou um livro que se tornou best-seller mundial: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Berman também não estava sendo original. O seu título vinha de um texto amado por muitos e odiado por outros tantos, o “Manifesto Comunista” de Karl Marx e Friedrich Engels: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”.

      Não dá para entender como a palavra serenidade entrou nessa história. Bauman resumiu sua leitura das coisas com simplicidade: “Os tempos são líquidos porque, assim como a água, tudo muda muito rapidamente. Na sociedade contemporânea, nada é feito para durar”. A questão da fluidez na modernidade apareceu também nas reflexões do poeta francês Charles Baudelaire e nas interpretações do ensaísta alemão Walter Benjamin, que teorizou sobre a perda da aura na “era da reprodutibilidade técnica”. Quando tudo pode ser copiado ao infinito, o original perderia o valor? Ou, contradizendo Benjamin, seria a única permanência ainda válida, o que justificaria as viagens turísticas de massa para ver quadros originais em museus?  Em princípio, no auge do capitalismo de consumo, com a obsolescência programada dos produtos, como duvidar da liquidez de tudo? A Apple foi processada por programar a morte lenta, mas não tanto, dos seus celulares. Ainda que pareça petulante, vai uma pergunta: Bauman estava certo? Tudo escorre impiedosamente ou há algo capaz de perdurar por trás das aparências?

      Há constantes no fluxo: precarização das condições de vida, consolidação das relações baseadas no ódio, ideologização radical da totalidade da existência, desumanização do cotidiano, robotização, fixação de uma visão de mundo assentada mais na competição do que na cooperação, confronto. Uma frase sintetiza tudo isso: os robôs vieram para ficar. Quando uma tecnologia tem eficácia nada pode ou deve pará-la. Como ironiza Pierre Lévy, especialista em tecnologias da inteligência, ninguém pensaria em vetar a água encanada para salvar os milhares de postos de transportadores de água. Tudo tem consequências. Só não são escolhas. Imposições? Trajetória “natural” do desenvolvimento tecnológico em tempos extremos e vertiginosos? Nos tempos ditos líquidos a prevalência do tecnicismo soberano é algo palpável, uma sólida realidade que não se submete a qualquer contestação. O homem pode ser líquido. O seu contexto é puro ferro.

Um intérprete dessa permanência na impermanência tem sido o cineasta Ken Loach em filmes como “Você não estava aqui”. A arte, mesmo aquela comprometida com o êxito, é um dos últimos redutos do contraditório. O artista anda no contrafluxo. A filosofia perguntava: o que é o homem? Agora, precisa questionar: o que será do homem?

       

*

 

Contratempo

 

O tempo é o senhor das horas que nunca passam.

São apenas os anos e os invernos que nos abraçam,

Vestindo jeans com buracos, o cabelo desbotado.

 

Tempo, tempo, tempo, seu maldito velho safado,

Há quanto tempo eu não paro para te contemplar.

Ah, eu só queria ter uma janela aberta ao poente

De onde pudesse todos os dias te ver definhar.

 

Ou um relógio de longos ponteiros e sombras frias

Para te congelar ao cair lento da tristeza dos dias,

Tendo às minhas costas o vinho e a escova de dentes.

 

O hálito do tempo é sempre mais pesado,

Quanto mais nós passamos, mais ele perde o frescor.

A sina do tempo, na sua imobilidade eterna, ardido

É simplesmente nos encher de um líquido pavor.

 

Tempo perdido, tempo esquecido, tempo vendido.

O tempo não passa de uma falsa ampulheta

Pingando uma gosma velha na tarde solitária.

O tempo é senhor das horas que ele mesmo não passa.

Nós é que passamos por não saber como parar.

 

 

 


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