Tentativas e erros

Tentativas e erros

Crônica sobre a capacidade de sonhar

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Só posso dizer que tentei.

Uma, duas, dez, mil vezes.

Tentei e ainda certamente tentarei,

pois nasci desprovido da capacidade de não sonhar.

Esculpido no ar

Uma criança sozinha não embala a estação

É preciso um exército para mudar o tempo

E outro para acertar os relógios do vento.

Uma andorinha sozinha não cala o inverno

É preciso um bando para assustar as nuvens

E outros pássaros para ensaiar gorjeios.

Uma tropa evade-se e por todos os meios

Desenha elefantes azuis em telas de algodão

Que desabam sobre as casas quando chove

Lavando telhados por onde a morte se move.

Um trovador solitário não fala do verão

É preciso uma primavera para acender o sol

E um outono para queimar as folhas no atol

Feito de corais, musgos e invernos.

A infância inteira não demove o ancião

Que se esconde dentro do pássaro e do homem

É preciso ser menino para entender o girassol,

O voo da pandorga, a eternidade e os filhotes

Que latem para o trem e roubam sapatos

Como moleques nadando nos claros regatos

Que desaguam em rios tingidos de têmpera.

Se um galo sozinho não tece a manhã,

Um velho sozinho não escreve um poema.

É preciso uma nuvem de estorninhos

Para que as palavras saiam dos ninhos

E a certeza da tarde para cantar seguro

Antes que a noite silencie o intervalo

Entre a luz, as cores e a maciez do escuro.

Na solidão luminosa do alvorecer um galo

Nunca é mais do que um melancólico valo

Na crista da onda que bate em grãos de areia.

Areia de que são esculpidos homens e tais,

praias, sonhos, vales, galos e imortais.

Até que sejam varridos como pó.

Um navegador sozinho nunca será Cabral.

 


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