Texto encontrado num 386

Texto encontrado num 386

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De repente, no disco rígido do velho 386, surgiu o texto.

Eis-me novamente aqui no turbilhão inglório da vazante morna vendo o sol encoberto pelas sombras dos seus adoradores. Eis-me aqui contemplando os fantasmas do passado armados de garras do presente e de esperanças claudicantes no futuro.

Eis-me aqui no momento em que as instituições se transformam, as certezas diluem-se, as teorias engolem os fatos, que espreitam por frestas do tamanho de portas, e monstros de todas as cores vomitam suas verdades aos quatro ventos que já não sopram pela eternidade. Eu sabia que para entender certas coisas, chamadas de complexas ou complicadas, bastava perder algumas horas estudando as regras do jogo, suas explicações e vocabulários, mas que cercas de arame farpado eram erguidas para proteger os guardiães da colheita e manter afastados os franco-atiradores.

Eis-me aqui na tarde cansada do lento verão cercado pelas tropas de duas correntes igualmente ferozes e dispostas a me executar ao menos sinal de fraqueza. Velhos lanhos, antigas sanhas, perdas e ganhos, reflexos de arcaicas guerras em que o vencedor impunha sua narrativa e o derrotado recuava para se arremessar num ataque suicida. Eis-me aqui neste tempo, como o de antes, em que isenção é a coincidência com o pensamento do outro, esse outro que me aprova enquanto eu o aprovo, este tempo em que prova é uma fabulação lógica verossímil, portanto provável, e diabólico é aquele que discorda de mim pelo simples fato de ver o mundo de outra forma, algo inaceitável e feio.

Na manhã que cala eis-me novamente aqui sem acreditar em ninguém, atraindo o ódio de todos e ouvindo os sermões daqueles que jamais são igualmente rigorosos com quem os afaga ou consigo mesmos. Eis-me aqui neste tempo de sempre em que só sobrevivem os que escolhem lado, negando a tormenta da independência e irrigando os canais da grande racionalização. Eis-me aqui com medo dos meus inimigos e mais ainda dos meus supostos amigos prontos a me devorar por não me comportar com um bom soldado fiel simplesmente por não pertencer a qualquer fileira ou quartel. Eis-me aqui solitário na luz glauca acreditando que todo inimigo merece ser combatido no campo de batalha e que ninguém, fora do crime hediondo, é suficientemente pusilânime para ser negado como alteridade, palavra que aprendi numa tempestade. Eis-me aqui suspeito de tramar contra quem admiro e de conspirar a favor de quem combato. Eis-me aqui, como sempre, incapaz de sentir asco.

Eis-me aqui outra vez como sempre fui, só, avulso, errático, inconstante, inconfiável, balbuciando ao anoitecer: não acredito na plena inocência do navegador, muito menos na imparcialidade dos seus algozes e menos ainda na pureza dos seus amigos e dos seus inimigos. Tudo que vejo na escuridão da estrada é que uns marcham com suas culpas e grilhões e outros guardam as culpas em gavetas brancas e seguem soberanos por alamedas na alvorada. Mas eu já vi tudo isso, já fui perseguido por ter visto, já me perdi na convulsão de tanta noite e de tanto atalho, de tanto som, de tanta bruma e de tanto rebotalho. Eu era jovem, mal sabia que tudo se repete como ideologia.

Como poderia eu imaginar que me veria novamente num teatro de sombras com os mesmos de antanho, ou seus herdeiros, ou seus avatares, vibrando os mesmos látegos, fazendo as mesmas poses, espalhando seus ódios contra os ódios alheios como se fossem mensagens caídas das nuvens numa mágica intemporal de inocência e desinteresse universal. Eis-me novamente aqui debulhando fascismos de direita e de esquerda enquanto as horas pingam como se fossem grãos de areia numa ampulheta ilusória. Eis-me aqui apalpando a palavra abjeto e esperando a sua fundamentação. Sim, eis-me aqui novamente cheio de empatia pelos que sofrem, transbordando perplexidade, tentando amarrar fios que se perdem na extensão de suas lonjuras e de seus limites.

Nas dobras do caminho sempre estive alhures, repontando rebanhos de imagens, fagulhas, confluências. Atravessei o deserto e ressurgi no meu pequeno mundo como uma silhueta para dizer a todos: vocês nunca me terão. Nem precisam? Nem querem? Melhor assim. Nada perdem. Eu sou aquele que se perde, diverge, escapa, discorda de tudo e de todos. Não me gabo. Jamais conheci alguém de quem não pudesse apertar a mão mesmo detestando pensamentos e ações de tantos que andam por aí. Sei que existem os inaceitáveis, os indignos, os maus, os cruéis, os abjetos, mas tive até hoje a felicidade de não os encontrar. Não julgo nem condeno os diferentes de mim.

Apenas humildemente me confesso. É isso.

O tempo escorre ainda que permaneça o mesmo. Eu estou aqui. Eu estive lá. Era tudo igual. Minhas palavras não se adensam como velhos troncos nem se “adelgaçam como pegadas de gaivotas nas praias”. Falta a elas essa nobreza das criações elaboradas na certeza da superioridade. Tudo que emana de mim se espirala como as dúvidas que me despertam cada vez mais adiando indefinidamente a chegada das manhãs. Sim, a insônia me chama para conversar. Ela me pergunta:

– Por quê?

Nunca tenho resposta. Como conversar com um niilista bissexto? Eis-me aqui na encruzilhada das horas temperando alegria e tristeza esperando o dia de lavar os braços pesados nas águas da infância. Eis-me aqui de peito aberto na imensidão da sala iluminada pela fala.

Eis-me aqui novamente abjeto, suspeito de direitismo dissimulado ou agora escancarado, mas odiado pela direita sob acusação de esquerdismo radical , infantil e incurável.

Eis-me aqui como sempre independente.

Pronto para ser executado.

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