Tipologia da crise dos 60

Tipologia da crise dos 60

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      Um amigo me pediu um exemplar de meu livro “Para homens na crise dos 40 e para mulheres interessados em compreendê-los”. Está esgotado faz muito. Passou o tempo. Voou. Estou com 56. O meu foco agora já passa a ser a crise dos 60. Na época da crise dos 40, que examinei com distanciamento e postura científica irretocável, as obsessões dos quadragenários estudados eram três tipos de mulheres: as interessantes, as interessadas e as interesseiras. Nem sempre as combinações casavam: a interessada podia não ser interessante. A interessante podia ser interesseira. Um defeito da obra era o ponto de vista masculino. Faltou um volume para mulheres na crise dos 40 e para homens interessados em compreendê-las. Falha grave até comercial.

Confesso que o livro tinha outra limitação importante: só se ocupava de relações heterossexuais. Pecava pelo viés heteronormativo. Desconsiderava toda a discussão sobre gênero. Uma primeira abordagem da crise dos 60 vislumbra três novas categorias: a cuidadora, a cuidadosa e a cuidada. O viés masculino continua. Já ouvi a objeção de que estou confundido a crise dos 60 com a dos 70 ou até dos 80. Os defensores dessa ideia, hipótese que não pode ser descartada levianamente, alegam que a balzaquiana de hoje tem 50 e não 30 anos como na época em que a expressão foi criada. Mesmo que seja uma precipitação, desenvolverei alguns aspectos da nova tipologia citada.

Antes, porém, preciso relembrar algumas características do quarentão em crise. Eu os classifiquei em três tipos: o predador, o ex-gato e o tio. Descrevi minuciosamente os primeiros sintomas: “Lobo ferido, o homem de 40 anos fareja o devir como o cheiro da morte. Não a morte física, possivelmente ainda muito distante, mas a das utopias. Nos projetos de cada um, flagra o próprio cansaço”. Forneci elementos para a identificação dos casos consolidados e crônicos: “Na crise dos 40, o homem vê novelas, especializa-se em enologia, esteira, folhas verdes e tomate seco, sonha com atrizes e desabafa como um canastrão. É só o começo. O pior é que passa a acreditar no valor universal das suas experiências individuais, principalmente as amorosas”.

No geral, a crise dos 40 começa com o surgimento do primeiro fio de cabelo grisalho. Um baque. Outro sinal é que as meninas passam a chamar o homem de senhor e, por fim, de “seu”, sinal de que nunca dirão “meu”. Revelei que o interesse por cores cítricas é um sintoma de agravamento da crise. Não posso atestar que essa leitura continue válida. Quase não tenho contato com homens de 40 anos. Não fazem parte da minha tribo. Os poucos que conheço, orgulhosos, mesmo sentindo a fisgada da crise, me olham com desdém como que dizendo “pobre do velhinho, é daqueles que ainda veem no rock uma música de protesto”.

Como é o homem à beira da crise dos 60? Se o quarentão via as suas certezas derreterem, o quase sexagenário vê as suas dúvidas se solidificarem. Alguns, ainda não tenho os dados estatísticos, sentem que é a hora de sair do armário. De repente, ouvem uma voz interior:

– É agora ou nunca!

Muitos nem sabem que estão engavetados. Passada a surpresa, defrontam-se com detalhes práticos como conta conjunta. Sair do armário, segundo pude apurar informalmente, é bastante burocrático. Leva mais tempo do que para abrir uma empresa no Rio Grande do Sul. Quando não se trata disso, a crise dos 60 pode ter a ver com a fixação de metas para o futuro. O que fazer? Que desafios enfrentar? Ainda é cedo para largar o emprego de várias décadas e tentar ser senador. Uma saída bastante usada tem sido a alternância de Rivotril e Netflix. Sempre tem quem entre num PDV e compre um café ou uma pousada.

Muitos, vítimas de fragilidades velozes, de demências precoces ou de desejos tardios, descobrem a cuidadora, a cuidadosa e a cuidada. Quem são elas? Como vivem? O que pensam? Do que falam? Como se vestem? O que desejam? Cada qual com seus defeitos e qualidades. A cuidadora pode não ser cuidadosa. A cuidadosa pode precisar de cuidado. A cuidada pode ser autoritária, possessiva e vigilante. Na crise dos 40, o homem começa, por desatenção, a fazer xixi na borda do vaso sanitário. Na crise dos 60, para diminuir o estrago, só resta sentar.

A cuidada quer falar do passado, de filmes esquecidos e datas jamais lembradas como o aniversário da primeira gata do casal, do primeiro beijo e da última transa. A cuidadosa só quer saber do tratamento e dos remédios. A cuidadora, das condições de trabalho e higiene. Não se deve generalizar. Salvo quanto a não generalizar. Há cuidadoras cuidadosas. Dizem que é a maioria. Não achei um aplicativo que me permita monitorar isso. Nem dados do IBGE ou algo como um scout cartola. Esta é uma análise inicial ainda não submetida a parecer cego dos pares, que é quando eles tentar enxergar longe. Precisamos considerá-la como hipótese a ser conferida por testes de refutação sucessiva. Nesta fase em que todos se tornam “de lua” é importante manter o espírito ensolarado. Bom humor é tudo. O homem na crise dos 60 costuma dizer que é fundamental rir de si mesmo. Diz isso e chora.

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