Todos pediam ao presidente

Todos pediam ao presidente

Correspondência revela cerco a Jango

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Entrevista/Juremir Machado da Silva

Chega às livrarias nesta segunda o livro “A memória e o guardião – em comunicação com o presidente da República: relação, influência, reciprocidade e conspiração no governo João Goulart” (Civilização Brasileira), de Juremir Machado da Silva. Nesta entrevista a Telmo Flor, diretor de redação do Correio do Povo, ele fala sobre a aventura de trabalhar com documentos inéditos e reveladores de uma época.

Caderno de Sábado – Sua prolífica obra, de quatro dezenas de livros publicados, afora as traduções, contém uma espécie de "ciclo trabalhista"´. "Getúlio", "1930 - Águas da Revolução", "Vozes da Legalidade" e "Jango - A vida e a Morte no Exílio", dissecam os ícones trabalhistas Getúlio Vargas, Leonel Brizola e João Goulart. Por que Jango merece mais um livro?

Juremir Machado da Silva – Jango é uma figura rica, complexa, que merece aprofundamento. Mas a razão de eu escrever “A memória e o guardião” tem de algo mais pontual: tenho trabalhado em meus livros com muita documentação inédita. Em “História regional da infâmia”, sobre os negros farrapos, explorei documentos sobre o financiamento da revolução farroupilha com a venda de escravos no Uruguai. Em “Jango, a vida e a morte no exílio”, resgatei o atestado de óbito de João Goulart na Argentina, onde costa a causa da morte, “infarto do miocárdio”, pondo fim à ideia de que esse dado havia sido propositalmente omitido, numa confusão com um registro que remete à certidão de óbito. Além disso, explorei o rico manancial da investigação do Ministério Público Federal sobre a morte de Jango. Sem contar cartas inéditas de Jango durante o exílio ao general Serafim. O historiador sempre quer mergulhar num acervo completo de documentos inéditos, um arquivo intacto, uma fonte de dados inviolada pronta para revelar um imaginário e uma época. Foi isso que me veio parar nas mãos quando eu recebi o telefonema de Ricardo Guimarães, neto de certo Wamba Guimarães, de quem eu nunca tinha ouvida falar. Ricardo me oferecia quase mil documentos da correspondência de Jango guardados pelo avô durante mais de 50 anos.

CS – Vem mais por aí?

Juremir – E que o vem agora é o meu livro “A memória e o guardião – em comunicação com o presidente da República: relação, influência, reciprocidade e conspiração no governo João Goulart”. Resultado de cinco anos trabalho. Tudo começou com o telefonema de Ricardo Guimarães em 2015. Wamba era um gaúcho de Uruguaiana que atuou como assessor de gabinete de Jango na presidência da República. A sua tarefa era cuidar do fluxo da correspondência. Todos escreviam ao presidente: pessoas anônimas, políticos, ex-presidentes da República, religiosos, militares, diplomatas, empresários, amigos, aliados, adversários. E todos, em geral, pediam algo ao presidente: cargos para afiliados, empregos para parentes, empréstimos da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil, transferências de cidade ou Estado em funções públicas, passagens aéreas, promoções, apoio político, um helicóptero para o Papai Noel pousar num estádio de futebol, um cavalo preto, bolsas de estudo, o que se possa imaginar. Jango lia e despachava. Este meu novo livro só existe graças ao idealismo de Nilson May, presidente da Unimed Federação/RS, e de Alcides Stump, diretor do Instituto Unimed, homens de cultura. A entidade comprou as duas malas de documentos de Ricardo Guimarães, que estarão disponíveis para consulta na Casa da Memória e da Cultura (rua Santa Teresinha, 263, em Porto Alegre) e me deu o privilégio de explorar a papelada em primeira mão.

CS – As cartas, bilhetes, telegramas e outras correspondências guardados diligentemente por Wamba Guimarães desde o golpe de 1964 até sua morte e, depois, por seus familiares, até a condição atual em que podem ser preservadas, são um mero repositório de escritos de gabinete ou fornecem uma lente para a compreensão do período e de nossa história? 

Juremir – O livro poderia também se chamar “Todos pedem ao presidente”. O que se vê por meio dessas cartas, informes secretos, relatórios, minutas de projetos de lei ou de cartas a poderosos como o presidente americano John Kennedy é o funcionamento da máquina pública. Daí o subtítulo: “relação, influência, reciprocidade e conspiração no governo João Goulart”. Tudo está assentado na troca. JK escreve pedindo favores. Tancredo Neves faz o mesmo. Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, que conspirava contra Jango, também fazia seus pedidos. Um documento de antes da presidência de Jango mostra como se daria a partilha dos cargos entre partidos aliados em caso de vitória nas eleições de 1955. A estabilidade de um governante dependia da sua capacidade de atender aos pedidos que recebia, inclusive de adversários. Pedia-se ao presidente até para definir a transferência de um contínuo do Banco do Brasil. Luminares da imprensa também pediam ou indicavam, como Roberto Marinho. Fazer alianças e conquistar apoio significava saber o momento de atender os pedidos e de ampliar o leque.

CS – Seu livro revela o quanto personagens marcados na história como corajosos, heroicos, revolucionários, fortes, amigos, inimigos ou traidores podem ser impressionantemente prosaicos em seus pedidos levados ao presidente da República, muitas vezes em franca contradição com seus discursos públicos. É sina dos presidentes brasileiros terem que atender no balcão do varejo para poderem administrar o atacado da política? 

Juremir – Esse é o ponto nevrálgico. Jango parecia cercado no seu labirinto, acossado por pedintes de todos os calibres. JK não se constrangia: “Quanto ao Valter, você sabe quanto desejo aproveitá-lo. É um excelente amigo e companheiro...” Tancredo Neves interfere em defesa de certo Bolívar de Freitas com um argumento poderoso: “ele é irmão do ministro Gonçalves de Oliveira que tem sido voto certo nos problemas de interesse do governo, no Supremo Tribunal Federal”. O general Estevão Taurino pedia emprego para o filho: “Desejava Sr. Presidente, que um filho meu, Cláudio Cidade de Rezende, fosse nomeado Tesoureiro Auxiliar do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários Empregados nos Serviços Públicos (IAPFESP) para preenchimento de uma das vagas existentes na 7ª Região da Autarquia, nesta cidade do Rio de Janeiro”. Essa é a rotina do poder: receber pedidos, conceder, negar, conciliar, buscar meios de não frustrar aliados, de aproximar adversários, de aliviar os sofrimentos dos mais pobres que pedem ao presidente por não saber a quem recorrer e que esperam dele a palavra salvadora. Magalhães Pinto, que ajudaria a derrubar Jango em março de 1964, agradecia ao secretário pessoal de Jango, em janeiro daquele mesmo ano, por pedidos atendidos: “Com a minha atenciosa visita, venho agradecer-lhe e, por seu intermédio, ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República, a gentileza da atenção dispensada aos pedidos por mim encaminhados, relativamente a empréstimos hipotecários requeridos pelos Srs. Deputado Luiz Fernando Faria de Azevedo e José Mendes Faria”. Era sempre assim.

CS – A franqueza quase temerária com que se apresentavam os pedidos era, na sua opinião, um traço que indicaria descaso com a coisa pública ou apenas uma indicação de que aqueles homens e mulheres acreditavam estar fazendo a coisa certa e que, portanto, não precisavam de "conversas ao pé do ouvido"?

Juremir – Era o imaginário da época, a maneira de fazer as coisas, o costume. A política era um meio de obter vantagens pessoais. Um militar escreve a Wamba em defesa de um colega: “Tratando-se de grandes amigos, tanto ele como a esposa e os familiares desta, são ainda ótimos vizinhos, gostaríamos sinceramente – e muito te agradeceríamos – se obtivesses do ministro Jair, ou do general Assis Brasil, um ‘jeitinho’, no sentido de, no caso, quebrar a resolução ministerial e, em consequência, ficar o amigo Nelson servindo em uma das unidades da engenharia de combate – em Porto Alegre existe uma – próximas desta capital, ou de comunicações (São Leopoldo)”. Um governador da Bahia foi direto ao ponto: “Seria para mim de fundamental importância, por motivos de explanação desnecessária à sua argúcia, o aproveitamento de minha esposa, AIDIL CARDOSO SAMPAIO (contadora), numa dessas vagas”. Não havia constrangimento em pedir. Em caso de não atendido, a reclamação era certa. A regra do jogo era pedir para dar. Todo o sistema baseava-se em influência e reciprocidade. Jango não inventou essa dinâmica nem podia se livrar dela. Fazia parte da brasilidade.

CS – O livro mostra que o presidente da República era tido não só como um despachante necessário no balcão de negócios da política, mas por vezes esperava-se que fosse um "salvador da pátria". Como lhe parece que que Jango manobrava entre seus ímpetos modernizantes e a contradição dos apelos quase monárquicos do poder? 

Juremir – Jango teve um grande ministério. Era um homem muito inteligente, que aprendia rápido. Aprendeu muito com Getúlio, quando este se autoexilou em São Borja, e aprendeu bastante como ministro, vice-presidente e presidente da República num período conturbado. Compreendeu que o Brasil só saltaria para o futuro se rompesse com o seu passado e o seu presente de profunda desigualdade. Ele nada tinha de comunista. Era um cristão liberal com sensibilidade social. Entendeu que o capitalismo brasileiro dependia de um choque de modernização que passava por reforma agrária, reforma educacional, combate ao analfabetismo, reforma administrativa, bancária, urbana. Quase tudo precisava mudar. Ao mesmo tempo, estava preso numa engrenagem política histórica. Precisava de apoio parlamentar, de conciliação de classes, de uma tentativa de ampliação da sua base de sustentação e de corresponder às expectativas dos seus aliados. Andou sobre no fio da navalha, na corda bamba, pressionado pela direita para não radicalizar e pela esquerda para ir mais rápido. A sua arte consistia em se equilibrar nas ponta dos pés e jogar como podia para avançar sem atropelar nem criar novos obstáculos. Na sexta-feira, 13 de março de 1964, no comício da Central do Brasil, ele deu o passo que o derrubaria: assumiu de peito aberto as chamadas reformas de base. Anunciou a reforma agrária. Ali, definitivamente, começou a cair. Pilotando um país com dois pés no clientelismo e no passado, Jango abraçou uma ideia de futuro que se chocava com a dinâmica de exercício do poder e com o imaginário da Guerra Fria. Rapidamente foi rotulado de comunista e de incompetente. A imprensa, que se alimentava de facilidades públicas como parte do jogo, ajudou a derrubá-lo. Um capítulo interessante e instrutivo do meu livro é dos empréstimos de bancos públicos aos grandes veículos de imprensa da época.

CS – Eram os correspondentes de Jango meros oportunistas ou fazedores de oportunidades por meio dos poderes do presidente?

Juremir – Havia de tudo. Empreendedores que tentavam superar burocracias e regras absurdas, oportunistas prontos a abocanhar dinheiro público, políticos cuidando dos seus currais eleitorais, amigos interessados em capitalizar a amizade com o presidente da República, adversários determinados a tornar rentável politicamente uma simulação de aproximação e cínicos como Magalhães Pinto e outros. O lobby era escancarado, brutal, cotidiano. Jango queria que todos recebessem respostas às suas demandas. Era parte da política exitosa manter a comunicação com eleitores ou possíveis eleitores em dia. Quando isso não acontecia a reclamação era certa: “Em papel timbrado da Câmara dos Deputados, Francisco Leite Neto, parlamentar do PSD, avisa com pretensa justificativa:O governador de Sergipe - Seixas Dorea - relembra ao Presidente o pedido de nomeação que fez para o agrônomo - Aloisio Aciole Leite - chefiar o Fomento Agrícola de Sergipe. Desejava que ao tomar posse a nomeação já estivesse feita para facilitar os entendimentos sobre o plano de ação’”. Era uma questão de família.

CS – Apesar das onipresentes manifestações de apreço mais do que protocolares nas correspondências, é possível identificar a tensão política ou a adaga da traição escondida nos afagos dos que pareciam amigos?

Juremir – Por trás da cordialidade grassava a guerra pelo poder. Magalhães Pinto, por exemplo, conspirava e advertia: “Como é do conhecimento de V. Excia., o problema da reforma agrária vem sendo encarado pelo governo de Minas Gerais dentro de uma concepção global que envolve todos os aspectos”. Era uma maneira de dizer que o assunto era explosivo e não podia ser tratado como o governo pretendia. As conspirações não eram tão secretas assim e vinham de longe. Um informe sigiloso dizia: “Na noite de 8 para 9/5/963, houve a reunião citada no relatório anterior, no escritório Arthur Rios, elemento íntimo das correntes golpistas, situado na Rua México 31. A referida reunião foi acertada entre Lacerda e elementos civis e militares que tomaram parte ativa nos movimentos de ARAGARÇAS E JACARÉACANGA”. Jango vivia o seu governo como uma permanente agonia. Cada avanço gerava uma ameaça.

CS – A correspondência com John Kennedy, ao invés de mostrar a suposta convergência entre dois líderes populares, ricos, bonitos e com lindas esposas, parece revelar uma frieza inusual até mesmo para os formais meios diplomáticos. Seriam os tais "interésses" sempre apontados por Brizola a razão do distanciamento ou uma confrontação absolutamente ideológica?

Juremir – Jango e Kennedy tinham pontos em comum, mas as diferenças eram intransponíveis. Kennedy mostrou-se dissimulado. É interessante ver como Jango, tendo ido aos Estados Unidos, onde tudo se fez para impressioná-lo com o poderio da grande potência mundial, manteve a altivez. As encampações de multinacionais feitas pelo governador Leonel Brizola pesavam na relação. Jango, mais uma vez, estava obrigado a negociar. Não podia dar passo atrás nem ampliar a tensão existente.

CS – Na sua opinião, que presidentes renderiam bons livros se encontrássemos malas com suas correspondências pessoais? 

Juremir – Era adoraria encontrar duas malas de cartas jamais analisadas do general Médici. Queria ver se lhe falavam da tortura e da repressão. Há personagens que não foram presidentes e também despertam minha curiosidade de historiador. Osvaldo Aranha é um deles. Mas também me interessaria escrever sobre Nilo Peçanha, o presidente brasileiro negro, caricaturado pelos seus inimigos como “mulato”, que governou a partir de 1909 em função da morte do titular, o mineiro Afonso Pena.  


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