Toni Morrison era uma diva literária

Toni Morrison era uma diva literária

Escritora morreu na semana passada

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 Toni Morrison faleceu na semana passada, aos 88 anos de idade.

Foi a primeira mulher negra a ganhar o Nobel da literatura. Era uma maravilhosa escritora. Eu a ouvi palestrar em Paris. Tive a sensação de estar diante de uma diva, uma deusa das letras, uma mulher impregnada de um saber especial, o saber da vida. Norte-americana, começou a escrever relativamente tarde, aos 39 anos de idade, e só teve reconhecimento ainda mais tardio, aos 56 anos, quando lançou “Amada”. Quando se fala que alguém obteve reconhecimento com algo, significa que ainda não o tem. Um prêmio para Chico Buarque ou Vargas Llosa não é reconhecimento, mas homenagem a talentos afirmados.

      Curiosamente, apesar do pouco sucesso, o primeiro livro de Toni Morrison, “O olho mais azul”, é um belíssimo trabalho sobre raça, beleza, gênero e preconceito. A história de uma menina negra que sonhava ter olhos azuis. Um corajoso desvendamento dos mecanismos que fundamentam um imaginário. Mesmo sendo professora universitária, ela enfrentou preconceito ao narrar as lutas de mulheres negras em dois séculos, XIX e XX, de racismo exposto nos Estados Unidos. Em cada página dos seus livros parece piscar uma questão: como foi possível? Ou como é possível que pessoas sejam discriminadas pela cor da pele?

      A literatura de Toni Morrison sempre teve essa força da urgência que faz da narrativa algo que não parece ficção, mas somente a vida sendo relatada em tempo real. É o que infelizmente falta em boa parte dos escritores brasileiros atuais. Sobra esmero na produção da frase. Falta o salto para o real que faz do texto uma vivência extremada. O racismo é uma das maiores chagas da história da humanidade. Ele está mais vivo do que nunca. Em certo sentido, uma literatura do século XXI só tem valor se fala e combate preconceito.

      No filme “Cézanne e eu”, que trata de relação de amizade e rivalidade entre o pintor Cézanne e o escritor Émile Zola, respectivamente o menino rico que não teve sucesso em vida e o menino pobre que virou celebridade enquanto produzia, Zola diz, em certo momento, que a literatura do seu tempo esquecia de abordar uma categoria social, a dos trabalhadores. Ele se ocuparia disso. Uma literatura do século XXI será do combate ao preconceito ou não será, não terá relevância, não marcará, salvo como entretenimento fútil.

      Na palestra de Toni Morrison em Paris, no Louvre, ela falou sobre ser estrangeiro em casa, sentir-se estranho, deslocado, no seu lugar. Revoltada, sempre rebelde, mesmo depois de famosa e condecorada, mexia com os sentimentos de cada um. Há nos seus textos uma beleza forte, crua, às vezes, direta, cortante, questionadora, como se nada pudesse acalmá-la num mundo hipócrita e sempre racista. Outra vez, ela falava em Paris, numa livraria. Eu estava passando. Tentei entrar. Não havia lugares. Um casal de franceses reclamava de não poder entrar. A mulher, lembro-me bem dela, magra e alta, repetia, como se aquilo pudesse produzir uma cadeira vazia na sala:

– Vou perder a palestra da minha vida.


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