Trem desgovernado

Trem desgovernado

Pandemia impõe escolhas cruéis

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      Não lembro de quantas vezes falei aqui dos chamados “experimentos mentais” citados por filósofas como Philippa Foot e Judith Thomson. Eram aquelas ideias consequencialistas (o resultado é que importa) sobre, por exemplo, o trem desgovernado. O maquinista morreu, se o trem seguir em alta velocidade na sua linha vai matar três crianças. Se uma pessoa mexer numa chave abre-se uma bifurcação e o atropelado será um homem de 80 anos. Que fazer? Salvar as crianças e matar o idoso? Os dados da história podem variar conforme o narrador. Não salvar as crianças seria omissão? Matar o idoso poderia ser visto como crime doloso? Com atenuantes?

      Passamos das abstrações aos relatos. Médicos, por vezes jovens, precisam escolher entre um idoso com respirador e uma mulher com três filhos para criar necessitando de oxigênio. A questão é: tirar o respirador do ancião e passar para a mulher? Num hospital, teria sido feita a troca. A mulher salvou-se. O homem morreu. Em outro, não teria havido hesitação. A mulher foi salva. Noutro, houve dúvida por algum tempo. O resultado teria sido mais brutal do que o imaginado: ambos morreram. Como fica o médico que tem de tirar o oxigênio de um para salvar outro mesmo que existam protocolos e decisões coletivas? Pode-se imaginar a violência da situação e da escolha:

– Com licença, o senhor já viveu bastante. Preciso salvar uma pessoa.

      O vírus não foi invenção de quem quer que seja. A falta de equipamentos ainda é uma questão de decisões humanas. Como fica a cabeça de um médico inexperiente, generoso e idealista, tendo de decidir? O que diz quando volta para casa: hoje eu salvei uma pessoa e deixei morrer outra? De quem é a culpa pela situação na qual tal médico foi mergulhado? Não há culpados? Se tivéssemos sido mais duros na adoção de restrições os hospitais teriam lotado levando médicos a tais escolhas de Sofia? Se a compra de vacinas não esbarrasse em tantas resistências e burocracias estaríamos condenando médicos a definir quem vai morrer? Se não insistíssemos em aglomerações como se vivêssemos tempos normais haveria tanta contaminação? O consequencialismo era uma teoria meio bizarra.

      Hoje, na justiça e na medicina, o consequencialismo deixou de ser uma abstração. Podemos ter uma nova definição de barbárie: escolher quem terá direito a respirar. Leio nos jornais que o Brasil se opõe a outros cem países que não mandam no mundo numa decisão crucial para a humanidade: a quebra das patentes das vacinas. É algo que fere interesses de farmacêuticas. Os países ricos já encomendaram as suas vacinas. Tem gente querendo comprar para revender. Há empresários postulando adquirir vacinas sem doar parte ao SUS. Qual é a lógica se o Estado tem dinheiro para comprar? Só pode ser uma: furar a fila das prioridades globais.

      A humanidade está diante do trem desgovernado. Se mexer na chave, todos se salvam. Perdem, em parte, as farmacêuticas, que ainda assim receberão bastante pelas suas descobertas. A palavra mágica é solidariedade. Há dois perigos: o vírus e o egoísmo, que também atende pelo apelido de lucro. Lucrar é legítimo. Se não for matar ninguém.


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