Um bandido cuidando da casa?

Um bandido cuidando da casa?

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Uma cena

 

      Ando muito de ônibus. É o meu transporte preferido: o mais barato, o que mais facilita a leitura, o mais pluralista e o que mais me inspira. Carro particular é coisa do passado. No futuro próximo o transporte coletivo se imporá. Costumo produzir cenas inteiras de romances ou de contos em meus trajetos pela cidade. Gosto de ficar na janela vendo a paisagem passar e tendo visões. Uma cena que sempre me ocorre é esta. Estou no exterior. O celular toca. Atendo rapidamente.

– Cara, um bandido invadiu o teu apartamento – me diz um amigo.

– Invadiu como? – a gente sempre faz perguntas bestas.

– Invadindo – as respostas são sempre lógicas e devastadoras.

– Deixa ele lá – respondo categoricamente.

– Como deixar lá? O bandido tá dentro da tua casa.

– Eu sei, tu já disseste. Mas, ao menos, ela não fica abandonada.

Meu amigo fica estarrecido. Que lógica é essa? Ele insiste, argumenta, afirma que até eu voltar, no fim do ano, o estrago poderá ser total. Ele não deixa de ter razão. Eu respondo paradoxalmente:

– Tirá-lo agora pode ser pior. Daria muita confusão e desordem.

– Pior? Mas até o fim do ano não vai sobrar nada do que é teu!

Não cedo. Meu amigo se irrita. Acha que fiquei louco. É daqueles que acreditam em provas. Faz um relato do que já me foi saqueado.

– O bandido já vendeu os teus móveis.

– Dos males, o menor – respondo para espanto do meu amigo.

– Menor? Tu não eras pela punição imediata da bandidagem.

– Sou. Mas tudo tem a sua hora. Depois a gente vê isso. Esse bandido ainda vai pagar pelo mal que está fazendo. A justiça não vai falhar.

– Depois? O cara está fazendo reformas. Vai desfigurar tudo. Sabe a tua biblioteca com aquelas lindas estantes? Queimou tudo na lareira.

– Dói saber disso, mas o mais prudente é não mexer com ele agora.

– Prudente? Sabe aquele teu quadro grande com o D’Ale? Queimou também. Se não tomarmos providências, ele vai acabar com tudo o que é teu.

– Não vai conseguir. É pouco tempo. Vamos segurar.

– Estou te estranhando. Mudaste muito tempo em pouco tempo.

– Engano teu.

Meu amigo fica mudo. Terá sido a minha sinceridade a silenciá-lo? Sei que ele espera uma explicação mais consistente. Não dou.

– O que mais me irrita é a vizinhança – diz ele.

– Que tem a vizinhança?

– Não faz nada. Nenhuma reação. Indiferente.

Fico pensando. Meu amigo tem mania de coerência e de simetria. A ligação está ficando cara. Mesmo assim, por curiosidade, pergunto:

– O que a vizinhança deveria fazer?

– Sei lá. Bater panela para avisar a polícia, alguma coisa assim.

– Não é o melhor momento para isso – reafirmo.

– Não entendo.

– A casa precisa ser protegida por alguém.

– Mas é um bandido? Tem cada vez mais provas contra ele.

– Há outros mais perigosos.

Meu amigo perde as estribeiras. Solta um palavrão.

– Então tem bandido útil, cara...ca?

Estou no ponto final. O cobrador me manda descer.

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