Um centauro no ônibus

Um centauro no ônibus

Dez anos da morte de Moacyr Scliar

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      A gente subia no ônibus pela porta de trás. As pessoas se amontoavam nas paradas. Os bancos eram vermelhos. O cobrador gritava com os passageiros: “Um passinho mais à frente, por favor”. Havia flâmulas enfeitando o alto do para-brisa, acima do motorista, como se fosse a parede vidro de uma sala ou a janela envidraçada dando para uma paisagem em movimento. Uma placa, entre as flâmulas, avisava: “Fale com o motorista somente o necessário”. O que seria o necessário? Na dúvida, quase nada se dizia, exceto um ralo “bom dia” ou um “obrigado” não discriminado e até constrangido como uma infração. Se o motorista estava condenado ao mutismo, o cobrador discursava. Os passageiros sentados cochilavam na longa viagem. Os demais, em pé, transpiravam em silêncio como se estivessem condenados ao horror.

      Num determinado ponto havia uma estação de transbordo. Mas o projeto falhara. Restavam colados nos vidros círculos com letras “A”, “B”, “C”, que orientariam a posição dos ônibus no corredor de alinhamento e circulação. A cidade era uma imagem desfocada no começo de um fim que ainda se desenhava como uma possibilidade. Vez ou outra, ouvia-se um comentário: “A ditadura já era”. Depois, retomava-se o silêncio, salvo às segundas-feiras, quando era possível ouvir comentários sobre os jogos de futebol do final de semana. Nas paredes de prédios tristes, inscrições em letras trêmulas marcavam um personagem: “Toniolo”. Para o recém-chegado, tudo era mistério. Na memória em trânsito, cenários se misturam. Os gestos dos motoristas eram lentos e saturados. Eles puxavam a enorme palanca das marchas e soltavam a mão no ar como se mostrassem cansaço, tédio ou fastio.

      O cobrador espalitava os dentes ou coçava o bigode ralo lembrando um centroavante de revista em preto e branco. Tudo se repetia a cada parada, soturna e solidamente, num avanço lento do subúrbio, com ar de cidade do interior e árvores empoeiradas inclinando-se das calçadas para as ruas, passando pela avenida comercial e industrial, com sua tristeza de asfalto e certa decadência precoce, até o centro, com sua turbulência sem futuro e suas lojas chamando clientes apressados pelo destino ou apenas pela rotina. O trajeto era uma espécie de evolução do passado para o presente, do rural ao urbano, da nostalgia à necessidade, do descanso ao trabalho.

      Algumas vezes, um homem, sempre mais velho, erguendo-se lentamente até se tornar ereto e altivo, dava o lugar para alguma mulher esbaforida. Os mais jovens baixavam a cabeça fingindo dormir ou pensar. A mão direita do motorista erguia-se como se buscasse um impossível apoio no vazio. O cobrador, no seu poleiro, fitava o congestionamento com indiferença ou ceticismo. Chegar não lhe importava. Na pasmaceira do veículo, janelas escancaradas, por onde entravam fuligem e ruídos, diante das expressões incolores da vida comum, sem mágoas nem exuberância, eu lia absorto “Um centauro no jardim”, de Moacyr Scliar. O cobrador tirava o palito da boca, olhava para baixo, onde eu me protegia do caos ordenado, e perguntava:

– É bom esse livro?

– Maravilhoso.


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