Um homem comum

Um homem comum

Sobre o vitalismo de rebanho

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       A noite caía como uma esperança ainda não extinta num tempo de poucas ilusões e muitos temores quase sempre justificados. Sentia-se medo de um inimigo invisível que podia extinguir a humanidade embora boa parte dos seres humanos continuasse a ignorar o perigo, dominada pelo que Pedro Escorel, o rabugento que via o crepúsculo pela janela, chamava de vitalismo do rebanho. Era possível, especialmente com uma câmera fotográfica ou um celular, ver uma enorme faixa preta retangular apagando casas, ruas e campos, os últimos campos de um lugar desossado pelos anos de intemperança e de ocupações triviais.

      Acima da barra preta, tão vasta quanto implacável, corria uma faixa vermelha mais estreita e luminosa que fazia pensar num rio de lava vulcânica devorando o verde da existência, um movimento ao mesmo tempo sinuoso e oscilante, um mar rubro e incandescente na secura da quase noite de agosto, mês de desgosto e de cachorro louco, necessariamente nessa ordem, causa e consequência um do outro no imaginário de alguns, contraste violento com o negrume da área maior onde se desenhava como um rabisco uma árvore raquítica e triste feito a lembrança de algo não suficientemente valorizado na sua época. A barra vermelha engrossava um pouco no meio como que se revelando mais intensamente à percepção do observador. Por fim, perdia-se na extremidade da moldura natural entre franjas de vegetação e torpor.
      Sobre a lista vermelha superposta à nesga escura vibrava uma linha amarela parecendo um resto do sol que havia colorido a tarde contra as previsões meteorológicas e as certezas dos anciãos. Esse esquálido fio quase dourado costurava a imagem tirando o fôlego dos espectadores com tamanha melancolia e obrigando-os a apertar os olhos para ver mais longe, por cima dos edifícios, para além das fagulhas, reinventando a paisagem esquelética apagada pelas sombras altivas e, se a palavra não for melodramática demais, fantasmagóricas. As janelas já não eram os olhos de sempre espiando o vaivém enfadonho dos carros. Haviam sumido de um golpe no lusco-fusco da transição para o escuro. Em breve, só existiria a noite com seu cortejo de espectros e bocejos.

      Acima do fio amarelo, esse cordão de ouro falso, mas tão fascinante quanto quase tudo que se apresenta como mais real do que a realidade, segunda camada depois da mancha vermelha quase líquida, que por vezes assume tons ocres lembrando casbás encastradas às margens do deserto, terceiro andar após o alicerce negro da grande superfície inicial, estendia-se uma vasta zona azulada. Dava uma sensação de vertigem. Por um lado, parecia ser a última etapa de uma série de camadas superpostas, a mais distante coloração de um crepúsculo jorrando cores e tintas. Por outro lado, voltava-se por cima das demais faixas num efeito de repique sugerindo que ali se declinava o céu por inteiro, soberano, com enfeites em preto, vermelho e amarelo nas bordas. Esse azul amplo remetia a uma abóboda de catedral.

      O olhar que se entranhava nesse quadro crepuscular descobria rastros de amarelo no fluxo lânguido do vermelho ou laivos alaranjados impregnando a vasta praia azulada no extremo ou no alto da saturação de imagens. As tonalidades cambiantes em milésimos de segundos iam do azul pálido ao vermelho sangrento, do amarelo desmaiado ao dourado cintilante, do azul turquesa a um anil quase turvo, do preto impenetrável a um escuro com manchas brancas, buraco negro engolindo olhos, palhetas de cores, cintilações, brilhos e tensões irisadas, caso essa expressão faça algum sentido para quem não perde tempo com a anatomia de um anoitecer ou com os mil tons de uma tarde ferida.

      Outra coisa possível é fechar os olhos diante dessa imagem fugidia e luminescente, rastro de cor na imensidão do universo que cabe numa janela. Olhos fechados, mente vazia, pontos luminosos se multiplicam e se entrechocam. O vermelho incendeia o amarelo, que transborda sobre o azul. Juntos, se derramam sobre o preto, que os devora placidamente. Quando os olhos são reabertos, já passou. Resta a noite fechada para ser consumida por horas. Ou pela eternidade.

A decifração desse jogo de reflexos não parecia obedecer a qualquer ciência estabelecida. Talvez o impaciente Escorel se contentasse em dizer com sua conhecida “nonchalance”: “Uma imagem dessas assim vale mais que um milhão de palavras”. Como justificar essa sobreposição de luzes empilhadas sobre uma ausência? Como discursar em relação a uma fotografia acidental ou intraduzível? Como exprimir o maravilhosamente inexprimível? Escorel teria algo a dizer depois de capturar esse espetáculo da natureza banal? Ele falava pouco, padecia de memória fraca e já não perdia tempo com explicações. Passava as tardes inteiras diante do seu cavalete tentando eliminar o branco da tela, o seu adversário mais visível e persistente.

– Não me lembro de nada. Apenas pinto – dizia.

Escorel sofria de Alzheimer. Morreu de covid-19.


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