Um mundo simples

Um mundo simples

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 Um pescador me disse algo muito simples: “A gente não pesca o peixe por maldade. A gente pesca o peixe por necessidade”. Ainda existem pescadores que falam com estranhos e dão lições de vida sem cobrar nem almejar fama como palestrantes. O pescador me pescou. Enquanto separava os seus peixes, na manhã adiantada de tanto sol e mar azul, foi falando como se tivesse urgência em me educar. Disse:

– Tudo é simples, amigo, quando se quer simpleza nas coisas. A descomplicação da vida é uma maneira de ser no mundo, entende? A simpleza está em tudo, no sol, na sombra, na chuva, em sentir o ar entrar no corpo com alegria. Ser simples é saber gostar do que se tem.

Eu ia falar alguma coisa. Não pude. Ele antecipava meus pensamentos, atalhava minhas perguntas, parecia disposto a lentamente, na sua lentidão reflexiva e doce, ser sempre mais rápido do que eu.

– Vê esse mar? É de todos. É seu, é meu, é do doutor que vem de lancha, é do coronel, do senador, do homem da televisão. Mas é meu também. Essa belezura toda ninguém pode me tirar. Eu sou dono de olhar. Entende? Ninguém olha mais do que ninguém. Cada olhada é tudo.

Diante do meu sorriso, ele se empertigou. A pesca tinha sido boa.

Havia peixes graúdos no barquinho. Falou buscando ser didático:

– Sabe o nome desses peixes, doutor?

– Não sei...

– Nem precisa. Eu sei. É minha vida. Cada um sabe um pouco e juntos todos sabem o que é preciso. Ou quase, que tudo só Deus Nosso Senhor. Mas tem coisas que todos precisam saber fazer, não tem? Não acha?

– O que mesmo? – foi tudo que ele me deu tempo de perguntar.

– Olhar. Veio aqui por quê?

– Viver.

– Pois é o que estou dizendo: viver é saber olhar. Quer ver? Olhar esse mundão, esse mar todo que é um mundo à parte, e saber se contentar em ser dono dele porque ninguém pode lhe proibir de olhar.

Comecei a pensar que ele me via como uma presa fácil, alguém querendo ouvir, precisando escutar, disposto a ser ensinado. Eu podia interpretar o que ele me dizia como um elogio ao conformismo, uma aceitação resignada do que se é ou do que se tem, ou, ao contrário, como uma sabedoria tranquila numa época de ambições desmesuradas.

– Simpleza é fazer parte do natural, como um peixe – ele disse.

Sim, ele tinha algo de personagem de livro de autoajuda. Ou era eu que projetava nele a minha interpretação de leitor preconceituoso. Uma vez, na França, um homem me surpreendera como uma oferta:

– Se quiser, posso lhe mostrar como se assa um javali.

Recusei. Ele também me falara sobre como viver num mundo simples.

Não percamos o pescador de vista. Guardei suas palavras:

– Nunca pesque mais do que precisa. Depois, vai precisar. Tudo anda em roda. Aquilo que vai, volta. O peixe que sobra hoje, falta amanhã. A gente pensa que sabe, até sabe, mas não sabe, aí é que pega, entende? Não lhe disse nada que não saiba, mas também não disse nada que saiba de saber vivido todo dia, sabe? Estou velho, começo a saber alguma coisa, o que meu pai me ensinou quando eu não tinha cabeça pra saber. A simpleza do saber infelizmente não vem cedo. A gente olha e não vê.

Ou vê e só enxerga a maldade alheia.

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