Um país racista

Um país racista

Raízes do conservadorismo brasileiro

publicidade

Fiz parte, com o vice-reitor da Unisinos, Pedro Gilberto Gomes, e o historiador Jorge Euzébio Assumpção, da mesa de abertura do vigésimo-oitavo encontro da Associação de Programas de Pós-Graduação em Comunicação. O evento foi organizado pela PUCRS. Momento de intensa reflexão. Quase quatro séculos de escravidão deixam marcas. Joaquim Nabuco resumiu: “Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar”.

Já se pagou por esse trabalho? Já se quitou essa dívida histórica? O decreto 1331-A, de 17 de fevereiro de 1854, aprovou a reforma do ensino primário e secundário. No seu artigo 69, para infâmia da nação, diz: “Não serão admitidos à matricula, nem poderão frequentar as escolas: § 1º Os meninos que padecerem moléstias contagiosas. § 2º Os que não tiverem sido vacinados. § 3º Os escravos”. Já se pediu perdão por esse atentado? José de Alencar, célebre como um Paulo Coelho da época, votou contra a Lei do Ventre Livre. Para ele, o filho da escrava pertencia ao dono da negra assim como a cria da vaca era propriedade do dono do animal. Ao imperador D. Pedro II, José de Alencar argumentava que a escravidão “é uma forma, rude embora, do direito; uma fase do progresso; um instrumento da civilização”. Valores da época? Não pensavam assim os abolicionistas.

Nem os escravos. O senador do Rio de Janeiro Paulino de Sousa, porém, esbravejava tentando impedir a aprovação da Lei Áurea: “Inconstitucional, antieconômica e desumana”. A imprensa dividia-se. A Província de São Paulo, que depois se chamaria O Estado de S. Paulo, nascera republicana e escravista, ganhando dinheiro com editais de leilão de escravos. Só em 1885 é que, sentido o ar do tempo, mudaria de lado. Mas isso não aparece ainda na narrativa gloriosa que se dedica no site que alimenta sobre a sua história. A abolição foi conquistada nas ruas, nos teatros, no parlamento, nas lavouras, com as fugas de escravos, e nos jornais. Nestes, travou-se um combate total. A Redempção, de Antonio Bento, o branco católico que organizou fugas em massa de cativos, foi talvez o exemplo mais radical de uma guerra aberta aos donos de escravos.

Para A Redempção, matar um dono de escravos era sempre legítima defesa. Para a legislação dominante, abrigar negro fugido era crime. A abolição obviamente não foi uma oferta da Coroa, mas uma conquista. Os três maiores líderes abolicionistas eram negros livres, filhos de pai branco e mãe negra: Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio.

Racismo – Nenhum imaginário se cristaliza gratuitamente. Em 11 de setembro de 1887, o jornal A Província do Espírito Santo publicou em primeira página a “Lenda da criação do preto”. “No tempo da criação do mundo, Satanás vendo o Padre Eterno criar Adão, de um pedaço de barro, quis também fazer o mesmo. Pegou num pedaço de argila, deu-lhe as mesmas voltas que vira dar-lhe Deus, e depois insuflou-lhe a vida num sopro. Mas com grande espanto e com grande raiva sua, esse bocado de barro, como tudo o mais que ele tocava, ficou negro: – o seu homem era um homem preto”.

“Ali ao pé corria límpido e transparente o branco rio Jordão. Satanás teve uma ideia, lavar o seu homem para lhe tirar a negrura. E pegou nele pela cintura como se pega num cachorro e mergulhou-o no rio. Mas as águas do Jordão afastaram-se imediatamente, enojadas com aquela negrura, e o homem de Satã, o primeiro negro, apenas mergulhou os pés e as mãos no lodo. E por isso só as palmas das mãos e dos pés ficaram brancos. Furioso com o seu desastre, Satanás perdeu a cabeça, e pespegou um famoso murro na cara do seu negro que lhe achatou o nariz e lhe fez inchar os lábios. O desgraçado preto pediu misericórdia, e Satanás, passado o primeiro momento de fúria, compreendendo que no fim de contas o negro não tinha nenhuma culpa de ser assim, teve dó dele, arrependeu-se de repente do seu gênio e acariciou, passando-lhe a mão pela cabeça. Mas a mão do diabo queima tudo em que toca: crestou o cabelo do negro como se os seus dedos fossem ferro de frisar. E foi daí que o preto ficou com carapinha”.

A conclusão é acachapante: “Si non é vero...” O processo de substituição da mão de obra escrava seria marcado pelo incentivo ao racismo. Pereira Barreto, em artigos publicados em A Província de São Paulo, em 1880, encarnava o cientificismo racista da época: “O que constitui, porém, o grosso da nossa população escrava é o contingente das outras populações caracterizadas todas anatomicamente pela sua menor massa de substância cerebral; e esta condição anatômica de inferioridade é bem própria para abrandar os rancores abolicionistas contra a parte da sociedade que tem por si a vantagem efetiva da superioridade intelectual”.

As marcas do escravismo e do racismo da retórica de valorização da raça branca superior europeia estão ainda por toda parte. Precisamos de pesquisa comprometida com a revelação constante desse passado que insemina o presente e compromete o futuro. Não há nisso neutralidade possível.

 

 

 


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895