Um romance no fio da navalha

Um romance no fio da navalha

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Livro doloroso

 

      Li “Bosque da solidão” (Scriptum), mais novo romance de Nilson May, em três investidas. De cabo a rabo. Nunca escrevo sobre um livro sem o ter debulhado página a página. Ofereço aos autores o meu mais profundo respeito. Tudo que eu tenho. Meu modesto capital. Gosto de mergulhar nas entrelinhas dos textos, imaginar os dilemas do escritor, suas escolhas, sua labuta, suas longas horas maturando cada palavra. May dá o teu reflexivo de sua prosa já nas primeiras frases: “Ao final de uma tarde de inverno, quando voltava de viagem, passei por longa ponte e olhei para o rio lá embaixo. Só vi extensa camada de névoa, ainda em formação, que cobria a visão da correnteza rumo à lagoa”.

É a história de uma jovem que se suicida. Há um pai ao mesmo tempo ausente, como narrador, e muito presente como referência a ponto de ser chamado de Ele, um filho pequeno, que não pode perceber plenamente o sofrimento da mãe, e essa jovem em queda livre. Uma mulher que tem tudo, em termos de bens materiais e oportunidades na vida, mas que é devastada pela tempestade que lhe agita a mente.

– Eu não gosto daqui – ela diz constantemente.

O problema é que esse aqui é o mundo. Nosso mundo de convenções, hipocrisias, mentiras, jogos de poder e imposições sociais. O leitor fica, porém, com a convicção de que a dor dessa moça não vem só da sua inconformidade com o seu, nosso, mundo, mas de uma “química” maldita: não há terapia que resolva. Nem remédio. “Bosque da solidão” descreve passo a passo o crescimento desse inferno mental, das birras de uma menina ao desespero de uma mulher, passando pelas rebeldias de uma adolescente e suas buscas por uma janela para se sentir melhor.

Serei fiel aos teóricos dos anos 1960 para quem a obra existe para além da biografia do autor mesmo quando pode dela derivar. O que nos diz esse romance doloroso? Em primeiro lugar, disparado, que o ser humano continua sendo um mistério e uma ilha. O sofrimento mental é um bosque indevassável. O que pode um pai fazer para aliviar o desespero de um filho? Terminamos a leitura com uma terrível sensação de impotência. Essa filha que pede, “me ajuda, pai”, mas não há o que fazer. Essa filha que caminha na borda da sacada do oitavo andar, diante dos olhos do seu menino que brinca, é uma bofetada metafísica.

Por fim, esse livro melancólico e sensível nos diz que é preciso seguir em frente mesmo que exorcizando fantasmas, esses seres invisíveis que povoam sempre mais visivelmente o nosso caminho dentro da noite de cada dia. Narrar do ponto de vista de uma mulher é sempre um desafio para um homem. Uma questão de imaginário. Esse foi o grande desafio do escritor Nilson May: captar a sensibilidade à flor da pele de uma moça sempre no limite da sua desesperança e do seu colapso. A dor da personagem aparece inteira nesta passagem: “Durmo, então, na expectativa de acordar aliviada, por algumas horas, talvez por alguns dias, se me for concedido. Os médicos orientam para a medicação permanente. A doença não tem cura, dizem, mas tem tratamento. Grande consolo. É uma merda, então”. Nunca um palavrão foi tão necessário

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Hoje, 10 horas, estarei na Feevale, no seminário “Desafios da contemporaneidade”, organizado pela Secretaria da Saúde de NH.

 

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