Uma boneca na correnteza

Uma boneca na correnteza

Cenas da vida passada

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      Por que não esquecemos certas imagens? Era isso que Antônio perguntava com frequência ao seu terapeuta, que obviamente não tinha a resposta definitiva. Então, devorado por suas lembranças, Antônio sofria novamente cada segundo do que lhe acontecera aos oito anos de idade. Um trauma? Sim, ele poderia aceitar esse diagnóstico como trivial. Por que uma imagem, no entanto, ficara enquanto as demais se perderiam na enxurrada do tempo, na lama daquela tarde, na violência da tempestade?

      Era disso que falava: da seleção da memória. Podia recuperar muitos detalhes daquele dia, mas não todos. Podia ouvir o pai dizendo secamente:

– Agora somos flagelados.

      Não sabia o que essa palavra queria dizer, mas também não precisava de um dicionário para intuir o seu sentido. Eram as vítimas da chuva, do aguaceiro que se precipitara sobre a comunidade, entre raios e trovoadas, como se tivessem sido condenados a uma expiação, palavra que também desconhecia ou confundia com o ato de espiar a prima pela fechadura do banheiro. Do que ele se lembrava? Da água barrenta espumando pela rua, das casas sendo invadidas pela lama, das pessoas correndo e chorando, dos animais aturdidos, da pequena ponte da esquina sendo arrastada, do momento em que a valão se rompeu e tudo foi engolfado por uma lava marrom.

      Viu a água arrastar a cadeira de vime na qual Dona Bilu adorava se sentar no quintal para sonhar com a sua mocidade. Viu, em seguida, telhados desabarem, carros serem tragados pelo arroio, cujas entranhas ressurgiram a céu aberto, uma cabra passar balindo na correnteza imunda. Não tinha tempo de pensar se cabras baliam ou se o termo era outro, pois já o medo se apossava dele na solidão em que se achava. Todos corriam para tentar salvar alguma coisa e ninguém tinha tempo de cuidar da sua aflição. Viu passar a geladeira comprada uma semana antes, em doze meses, por dona Marcelina, que fazia sete faxinas e criava sete filhos, tidos, um por ano, durante sete anos de fartura, salvo se ela se enganasse nas contas.

      Estava em cima do bocal do poço, resquício do tempo em que não havia água encanada. O poço era fechado com uma tampa redonda de madeira. Duas regras eram incontestáveis na sua casa: não tocar no revólver do pai, sempre sobre a mesa da sala, e não subir no poço. Mas o poço era a sua salvação. Dali, via tudo se esboroar. Estava na chuva. Onde poderia estar? Telhado não havia mais. Os pais ainda estavam no trabalho. Voltariam?

 

Para sempre na memória

 

      A água descia da parte da alta aos borbotões. Passou um cachorro ganindo. Os vizinhos corriam e gritavam, agitando-se como se não soubessem o que fazer, o que, de fato, já não sabiam, tal a força da enxurrada. O pai chegaria bem depois, a tempo somente de exprimir a sua desolação:

– Agora somos flagelados.

      O cachorro amarelo foi tragado pela correnteza como se fosse uma bolha de sabão, está aqui, não está mais, já foi. O céu era uma placa escura só iluminada pela palidez dos raios que se espiralavam em recortes de punhal. Foi então que, do seu mirante improvisado, sob o qual jazia o abismo, Antônio viu passar, frágil como o objeto que era, uma boneca na sua caixa. Era a boneca da Vini, a menina mais bonita da rua, uma boneca que brincava de boneca, mas não podia tirar a sua boneca mais linda da caixa na qual viera da loja. Um raio rasgou o céu e iluminou a boneca que refluía na água fedorenta como um cadáver embalsamado no seu caixão com uma janela de vidro. No caso, uma película de plástico transparente.

      Era isso. Por que a imagem da boneca na sua caixa boiando na correnteza, que fazia da rua esburacada um valo imenso e faminto, nunca mais lhe sairia da mente? Por que sonhava com aquela cena? Seria pela Vini, que nunca mais veria, mas cujo rosto nunca lhe aparecia nos sonhos ou nas lembranças? Não havia resposta. Gostaria de apagar aquela imagem, de silenciar aqueles trovões, de apagar aqueles raios, de extinguir a voz do seu pai, dizendo secamente, mas com um ressaibo de melancolia:

– Agora somos flagelados.

      Quanto tempo durou aquela chuva? Não sabia. Quando acordou, estava no hospital. Teve pneumonia. Só voltou à sua comunidade anos depois. Já não havia rastros da grande tormenta. Nem mesmo o poço. Os mais velhos, porém, ainda se lembravam. Nenhum, contudo, sabia algo sobre a boneca da Vini. Haviam sido alojados pela prefeitura numa vila distante do centro, que ficaria conhecida como Vila dos Flagelados. Eram os filhos da tempestade. Dona Marcelina pagou a geladeira até a última prestação. Dona Bilu nunca mais teve quintal nem cadeira de vime. O pai vendeu o revólver.

      Na tarde em que teve um aperto no coração e parou no hospital, reencontrou a Vini. Ela estava na emergência com uma filha. Era uma senhora tristonha nos seus 50 anos mal vividos. Ele não se conteve:

– Lembra da tua boneca, na caixa, na correnteza?

– Não me lembro.

      Foi tudo que ela disse. Teria mentido? Como poderia esquecer? Antônio não esquecia. Ouvia nitidamente a voz do pai repetindo secamente:

– Agora somos flagelados.


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