Uma fábula política

Uma fábula política

A invenção do marketing eleitoral

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      Conta a sabedoria popular que um homem, “encantado consigo mesmo”, convencido das suas qualidades, cobriu de espelhos “o teto e as paredes do seu belo quarto”, que tinha pelo mais belo quarto do mundo. Tudo o que era dele lhe parecia mais bem-acabado e sublime. Por isso, “com frequência ele se fechava para contemplar sua imagem”. Ele se admirava demoradamente, observando cada detalhe, valorizando a sua beleza, o seu porte, o seu ar de grandeza, os seus gestos finos, seguros, educados, preparados para comandar e melhorar o mundo.

      A autossatisfação era o seu ponto forte. Poucas vezes, segundo a lenda, um homem teve uma autoestima tão elevada. Não se via em momento algum como um ser vaidoso ou exagerado. Tinha-se simplesmente por alguém seguro do seu valor. Só precisava que todos soubessem disso. Um dia, distraído, pensando no bem que lhe cabia fazer ao universo, ele saiu e deixou a porta do quarto aberta. O imprevisto, que está sempre à espreita, encontrou ocasião para manifestar-se. O cão desse homem entrou na peça e espantou-se com os espelhos: “Vendo outros cães, cheirou-os como eles o cheiravam; rosnou como eles rosnavam; ameaçou-os como eles o ameaçavam; latiu como eles latiam; atacou-os como eles o atacavam”. Algo de extraordinário então aconteceu. Uma luta atroz.

      Era o solitário cão contra tantos cães que se pareciam com ele. Quanto mais atacava, mais era atacado. Quanto mais forte rosnava, mais forte rosnavam os outros. Não havia trégua. Era matar ou morrer. Moral da fábula: “Foi um combate pavoroso. As batalhas consigo mesmo são as mais ferozes. O cão morreu extenuado”. Não viu que os adversários morriam também. Desferiu todos os golpes que conhecia, inclusive os mais baixos. O dono amava o seu cão. Resolveu fechar com tijolos definitivamente a porta do quarto. Um asceta que fora visitá-lo (não há explicação para visitas de ascetas) disse-lhe que não deveria sepultar a quarto dos espelhos. O homem parou, surpreso com uma voz mais equilibrada do que a sua. O asceta então fez esta observação:

– Esse quarto pode ensinar muitas coisas.

– Quais?

– Esta, por exemplo: o mundo é tão neutro quanto esses espelhos.

­– Neutro?

– Sim. Ele sempre devolve o que lhe damos.

      O dono do quarto admirou-se de não ter pensando nisso. Quis ouvir mais para ter certeza de que o outro tinha algo a ensinar-lhe:

– Combatemos sem parar os nossos reflexos. Morremos nesse confronto. Melhor parar de brigar e tentar tirar proveito do que se é.

      Não é certo que o asceta tenha pronunciado essa última frase. O homem, contudo, ouviu-a claramente. Tinha grandes coisas a fazer pelos outros e precisava de um bom conselheiro, alguém capaz de refletir a sua personalidade como um espelho, mas eliminando os ângulos ruins.

– As pessoas veem a imagem que de nós damos a elas.

      Moral da história: nesse dia perdido no tempo foi inventado o marketing político. O asceta teria sido o primeiro marqueteiro do mundo. O seu cliente só não se elegeu, segundo explicou o conselheiro com ajuda de gráficos coloridos, porque tinha pouco tempo de espelho.

 


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