Vanusa, voz de uma adolescência

Vanusa, voz de uma adolescência

Cantora marcou geração dos anos 1970

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      Minhas irmãs mais velhas tinham pôsteres da Jovem Guarda nas paredes. Eu trabalhava numa banca de revistas, a banca do Pantaleão, na praça central da cidade e lia Sétimo Céu, Capricho e Contigo. Lia tudo: Realidade, Vida a Dois e Grande Hotel. Nas paredes e nas revistas apareciam Antônio Marcos, Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Ronnie Von, Martinha, Vanusa e tantos outros. Eu gostava da Vanusa. Ele morreu neste final de semana, aos 73 anos de idade. Quase chorava ouvindo “Oração de um jovem triste”, com Antônio Marcos, e ficava vidrado na sua calça boca de sino e na enorme fivela do seu cinturão.

      Vanusa me encantava com a sua loirice quase juvenil e sua voz sinuosa. Ela e Antônio Marcos viveram um grande amor. Vanusa me emocionaria cantando “Manhãs de setembro”. Sempre tive uma coisa com setembro. Eu me sentia encerrado e queria sair. De onde? Para onde? Não sabia. Setembro é que podia me abrir caminho. Neste ano, ainda, lutando com as sequelas da Covid, que finalmente se foram, esperei setembro como se fosse uma vacina e ouvi Vanusa. Sempre fui eclético: posso ouvir Beethoven, José Mendes, Anitta, Stan Getz e Vanusa em sequência. Gosto de tudo. Menos de sertanejo universitário. Por quê? Talvez não sinta o clima de setembro no que eles costumam cantar.

      Todo ano ouço Beto Guedes cantar “quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos”. Neste ano, porém, a boa nova chegou em novembro: a derrota de Trump. Junto veio a notícia triste do falecimento da Vanusa. Os mais jovens não sabem quem foi. Os mais velhos talvez já a tenham apagado da memória. Eu me mantive fiel. Depois do anúncio da sua morte, ouvi um mix das suas canções no Youtube. O coração apertou um pouco. Vanusa é uma das vozes da minha adolescência. Ela me faz pensar nesse “sol nas manhãs de setembro”.

      Eu era um romântico. Acho que ainda sou. Cabelos longos soltos ao vento, pôsteres de revistas nas paredes, o sol ainda na banca de revistas, a vida por viver, eu ouvia Vanusa cantar “hoje eu vou mudar” e achava, mesmo nada tendo vivido, que era a minha hora de mudar. Era a vida que gritava dentro de mim. Eu “vasculhava minhas gavetas”, quando ainda nem tinha uma, e encontrava “traças e teias” para eliminar. Enfim, uma natureza precocemente trágica ou dramática. Me faltava o senso de ridículo, que só obtive, em algum grau, a muito custo. Vanusa também cantava “Paralelas”, de Belchior, que seria o poeta dos meus embalos de domingo à noite nas “miniboates” de então.

      O meu terror da época era o general Ernesto Geisel, de quem apertei a mão quando fomos levados pela escola a vê-lo na praça, cujo semblante me pareceu de concreto armado. Um professor uruguaio nos contaria, sem que entendêssemos bem, o que andava acontecendo com os rapazes latino-americanos. Eu pensaria cada vez mais no Inter de Falcão, nos olhos da Capitu, na voz da Vanusa e nos poemas de Rimbaud, que eu descobrira numa edição intacta na biblioteca escolar. Vanusa se foi. No meu coração juvenil ele ficará como bela manhã de setembro.


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