Vargas, o anacrônico apavorado

Vargas, o anacrônico apavorado

publicidade

Novos tempos

 

      Encontro o Vargas. É homem de fórmulas. Já me receitou cloreto de magnésio para 21 doenças. Lê La Rochefoucauld de quem cita sempre a mesma máxima: “Nada é tão contagioso como o exemplo”. É contra campeonato de pontos corridos – por favorecer paulistas e cariocas, Vargas detesta Corinthians e Flamengo, “queridinhos da mídia” – e a favor do voto distrital – não se importa com as minorias. Ele me abraça. Tem horror de apertos moles de mão e de falta de entusiasmo.

– Vai mal – ele diz.

– De novo?

– Sempre.

É a sua fórmula de tratamento inicial. Se a gente deixar, por excesso de zelo e de nexo causal, ele enumera os nossos males desde a chega de Cabral. Começa com o tradicional “eles mandaram a ralé para cá, esvaziaram as prisões e os bordéis”. Deixo falar só para avaliar:

– Estamos na transição – ele dispara.

– Mesmo?

– Os novos tempos estão chegando.

– Sério?

– A cocaína será liberada e o churrasco proibido.

– Para com isso, vai.

– Falo sério. O sujeito poderá se drogar no quintal de casa em toda liberdade, mas será preso se assar um pedaço de carne. Anota isso.

Digo que ele exagera. Fica aborrecido. Sempre que isso acontece, trata de reforçar os seus argumentos. Vargas é autodidata. Tem opinião sobre tudo. Daria um excelente jornalista ou sociólogo. Solta outra:

– Novos tempos, novos afetos.

– Dá um exemplo.

– Bota o pai na clínica e leva o cachorro para passear todo dia.

Tento convencê-lo de que não há nexo causal entre essas duas coisas. Ele não admite. Pressionado, raciocina por caricaturas:

– Vai chegar o dia em que pai vai botar bebê em creche e só tirar quando ele tiver 18 anos. Nada é tão contagioso como o exemplo.

– Ah, estava faltando essa.

– É a pura verdade. Basta ver a corrupção.

– Como assim?

– A direita inventou, a esquerda copiou.

Admiro o Vargas. Anda pelos 65. Prepara-se para estrear nas redes sociais. No Instagram. Quer ser acompanhado como pessoa, não como profissional ou especialista de alguma coisa. Vargas tem convicções, pegada, atitude. Quase nunca concordo com suas fórmulas, mas reconheço que ele se esforça para reduzir a complexidade do mundo a algumas frases de fácil entendimento. Poderia ser mais sofisticado.

– Sou o último dos humanistas – afirma.

– Explica isso, vai.

– Sou do tempo em que não se beijava cachorro na boca.

– Que tem isso de mais?

– É um sinal.

– De quê?

– Dos novos tempos. Nada é tão contagioso como o exemplo.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895