Velhinha e mocinha, quando mulheres matam

Velhinha e mocinha, quando mulheres matam

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Tem assuntos que ficam martelando na cabeça da gente. Querem dizer algo. O quê? Dois crimes. A velhinha matou com três tiros um assaltante que invadiu o seu apartamento. A mocinha, ex-garota de programa, matou com um tiro o marido que a traía. Qual a relação entre os dois casos? Em princípio, só o fato de que duas mulheres mataram dois homens. A velhinha agiu em legítima defesa. Com três tiros? Não bastaria o primeiro, que acertou o peito do invasor? Argumentos revestidos de sensatez aparecem: ferido, o homem ainda poderia matar a senhora, que estava sob forte emoção e tratou de liquidá-lo para não correr risco. Além disso, se sobrevivesse, o bandido poderia tentar se vingar da velhinha na primeira ocasião.

A mocinha esquartejou friamente o marido. Segundo o laudo pericial, cortou o pescoço do homem com ele ainda vivo. O esquartejamento poderia não ter sido perverso, mas apenas uma maneira de livrar-se do cadáver. A decapitação com o homem vivo já são outros quinhentos. Surge uma tese: ela teria agido, num sentido bastante amplo, em legítima defesa, pois era humilhada constantemente. O marido, apesar de jovem e rico, só se relacionava com prostitutas, preferindo pagar por sexo a conquistar. Transformava as mulheres em objetos. É bastante provável que a assassina seja beneficiada no julgamento pelo fato de estar comprovada a infidelidade do esposo. A defesa dirá que ela agiu sob forte emoção.

Mas a premeditação pode atrapalhar essa estratégia de defesa.

A mocinha tem tudo de uma psicopata. A velhinha é uma boa pessoa, que sofre de artrite nas mãos, mas, mesmo assim, foi rápida no gatilho. O crime da mocinha provoca medo em todo mundo. Cada um pensa mais ou menos assim: “Pode acontecer com todo mundo, até comigo”. O crime da velhinha, pelos aplausos arrancados, é um sintoma. De quê? De uma vontade de matar. Um desejo cada vez mais explícito de enfrentar o crime com o crime, de eliminar o criminoso de revólver na mão, de atirar uma, duas, três vezes, até vê-lo parar de se mexer. Terá a velhinha, como a mocinha, sob forte emoção, atirado friamente? Terá tido, por um segundo, um sentimento de perversidade ao desferir o terceiro tiro, o tiro de misericórdia? Sei que parecerá maldade comparar os dois casos e fazer perguntas desse tipo sobre a atitude da velha senhora. Por que não?

Cada um se sente ameaçado de um jeito. O monstro de cada um é diferente. A velhinha, que se defendeu legitimamente, pode estar sendo usada pelos defensores dos piores sentimentos, os defensores da pena de morte sem julgamento e da execução sumária. A velhinha não tem culpa. O processo será arquivado. A mocinha terá de pagar. Fica, contudo, esta pulga atrás da orelha: tem muita gente querendo transformar a velhinha corajosa em velhinha pistoleira. Gente que a aplaude mais pelo terceiro tiro. Gente que vê nela a negação dos famigerados direitos humanos, tidos como instrumento de favorecimento a bandidos. A velhinha é boa. Muita gente está projetando nela os seus sentimentos de mocinha má.

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