Vitrola vermelha, livros verdes

Vitrola vermelha, livros verdes

Cuidar da alma na pandemia

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      Cláudia queria uma pequena vitrola de aniversário. Dei-lhe uma, vermelha, que encomendamos na internet e recebemos em casa. É linda. Parece de brinquedo. Podemos ouvir Elis Regina em vinil e sonhar novamente com uma casa no campo. Enquanto não chega a hora de trocar a cidade pela vida rural, leio clássicos ao som dos discos que a vitrola vermelha pode tornar mágicos. Um leitor rebate meu texto intitulado “crítica da razão subjetiva”. Admiro o seu tom docemente imperativo:

– A verdade não existe – afirma.

– Verdade? – pergunto.

      Ainda não recebi a resposta. Leio Maquiavel num exemplar de capa verde ao lado da vitrola vermelha (as cores me fazem pensar em pomares carregados de frutas maduras). Maquiavel diz: “Não deve, portanto, ser crédulo o príncipe, nem precipitado, e não deve amedrontar-se a si próprio, e proceder equilibradamente, com prudência e humanidade, de que a confiança demasiada não o torne incauto e a desconfiança excessiva não o faça intolerável”. Não temos príncipes. Ao governante, portanto, cabe não acreditar em tudo que lhe dizem, agir com prudência e humanismo, não ser paranoico nem ingênuo, não se precipitar nem se atrasar. É por isso, creio, que poucos estão aptos para a função.

      Troco Maquiavel por Hobbes. O livro também tem a capa verde. Faz parte da coleção “Os pensadores”. O inglês, nascido em 1588, recomenda ou constata: “A ansiedade em relação ao futuro predispõe os homens para investigar as causas das coisas, pois seu conhecimento torna os homens mais capazes de dispor o presente de maneira mais vantajosa. A curiosidade, ou amor pelo conhecimento das causas, afasta o homem da contemplação do efeito para a busca da causa, e depois também da causa dessa causa”. Cientistas buscam as causas dos efeitos. Príncipes prudentes consultam cientistas sobre as causas de fenômenos que afetam presente e futuro. Olho a vitriola vermelha e pergunto: o que causa meu encantamento? Uma hipótese me ocorre: a felicidade da Cláudia.

      Bacon não faz o mal. O pensador, Francis Bacon, chamado de “o primeiro dos modernos e o último dos antigos”. Ele foi implacável com as ilusões filosóficas. Nem Aristóteles escapou. Para ele, “a descoberta das coisas deve ser feita com recursos à luz da natureza e não pelas trevas da Antiguidade”. Ciência na veia a partir de observação, rigor metodológico e controle das opiniões abusadas e abusivas. Livros de capas verdes e vitrolas vermelhas não deixam espaços para especulações vadias. Ou vazias? Licença para mais um autor (a capa também é verde). Wittgenstein: “Observar não produz o observado (esta é uma constatação conceitual). Ou: não ‘observo’ aquilo que surge apenas através do ato de observar. O objeto de observação é outro”. Que salada é essa? Qual o tempero? Desembucha.

VAIDADE – A questão é a diferença entre gênero gramatical e gênero sexual. Precisa mesmo dizer “todos e todas” ou “todos” dá conta do recado? Poderia ser “todas” para “todos”. Por que não? O defensor da neutralidade do gênero gramatical não vê problema no “todos”, mas se sente desconfortável com “todas” para englobar todos. A guerra está declarada. O que isso tem a ver com a primeira parte desta crônica (sim, é uma crônica, afirmo)? Tudo. Absolutamente. Não vê o leitor? Resumo: em meio à pandemia, exilado no seu bairro, sem sair de casa há 39 dias, quase sexagenário lê clássicos de capa verde, contempla a vitrolinha vermelha que deu de presente à esposa e reflete sobre a relação entre gênero gramatical e gênero sexual. Ao mesmo tempo, pensa nas qualidades necessárias a um príncipe e no papel das ciências.

      Na vitrola vermelha Chico Buarque canta “Gente humilde”. Ai que vontade de chorar. Os moradores de Atlântida queriam um príncipe que lhes servisse ciência ao amanhecer. Estou inventando? Claro. Capistrano de Abreu perguntou a Machado de Assis se “Memórias póstumas de Brás Cubas” era romance. O próprio defunto personagem e autor teria respondido com precisão “que sim e não, que era romance para uns e não o era para outros”. A um aluno, no Colégio da França, que se atrevia a perguntar pelo lugar da subjetividade na sua obra e na vida das pessoas, o sociólogo Pierre Bourdieu respondeu com ar enfadado:

– A subjetividade é uma ilusão pequeno-burguesa.

      Eu estava lá. Eu não perdia uma aula. Moral dessa história (houve um tempo em que as histórias tinham moral, agora só a moral tem uma história): a vitrola vermelha é como uma Madeleine (a bolachinha de Marcel Proust) que me abre a minha percepção, não só ao passado, do qual nunca fez parte, mas dos horizontes. Então eu canto: “Tem certos dias/Em que eu penso em minha gente/E sinto assim/Todo o meu peito se apertar/Porque parece/Que acontece de repente/Feito um desejo de eu viver/Sem me notar/Igual a como/Quando eu passo no subúrbio/Eu muito bem/Vindo de trem de algum lugar/E aí me dá/Como uma inveja dessa gente/Que vai em frente/Sem nem ter com quem contar”. Triste.

 


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