Viver na contramão

Viver na contramão

Credos de um jornalista independente

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 Vivemos na era da aceleração total. Eu quero apenas andar lentamente. Experimentamos desejos insondáveis que devem se materializar. Eu só penso em receber a brisa da manhã no rosto. Este é o tempo das celebridades. Eu me contento em ser mais um na multidão. Cada vez mais gente planeja ir embora para bem longe, Europa, Estados Unidos, Austrália. Eu me pego sonhando em voltar para a bucólica Palomas. Bacana é estar conectado e possuir todos o gadgtes do momento. Eu sou feliz levantando a mão para chamar um carro que me leve a algum lugar, com um motorista com o qual eu possa falar do tempo, de futebol, dos brinquedos de antigamente e da vida que segue.

      É tempo de GPS. Eu adoro encontrar gente que se guia pela memória das ruas, tratando-as por apelidos. Outro dia, juro, conversei com um velhinho que falava em Rua do Arvoredo. Reinam os neotáticos, com seus esquemas e estatísticas. Eu recito de cor o 4-3-3 do Internacional dos tempos áureos da década de 1970. Comem tomates secos com folhas verdes. Eu devoro uma boa salada. Viajar tornou-se sinônimo de aproveitar a vida. Nada tenho contra os que gostam de se mexer sem parar. Eu prefiro deixar minhas raízes penetrarem fundo na terra que é a minha. Correm quase todos em busca de novidades, que nunca bastam. Eu degusto cada vez mais a repetição daquilo que me embala a alma.

      Os velhos donos do campo nunca me consideraram pronto. Os novos, embora não o confessem, me acham ultrapassado. Eu quero viver fora do tempo, das modas e das adorações tecnológicas. A tendência é usar aplicativos. Eu me sinto bem nos bancos dos ônibus. Os cinemas fecharam-se em shopping centers. Busco os que ainda possam estar o mais próximo possível das calçadas. Caminhar virou exercício, com tênis especial, equipamento de controle dos sinais corporais, personal trainer e metas a atingir. Eu sigo o ritmo dos meus passos na mais completa falta de educação física. A moda é risoto, com um arroz melequento. Eu me farto de arroz com galinha ou carreteiro de charque.

      Não bebo álcool, não fumo, não me drogo, durmo cedo, mas não me poupo. Vibro com o sol, a chuva, o canto dos pássaros, o sorriso das crianças, a chegada da primavera, sorvete e gol de letra. Correspondo às exigências do meu corpo. Gosto de futebol e torço, mas não me tornaria sócio de clube algum. Quero ser independente para nunca ter adesões definitivas ou contra as quais não possa me insurgir uma vez por semana, por dia, por hora, por minuto, sem qualquer militância.

      Entramos na era dos números. Tudo é quantificado. Eu quero estar fora de todos os rankings. De presente, nestes dias de consumismo idolatrado, quero manifestações de carinho, cumprimentos alegres, sorrisos ensolarados. Não sou de abraços apertados nem de longas conversas, mas na concisão sem pressa do meu tempo me emociono com a empatia que se lê nos olhos dos verdadeiros amigos. Eu quero apenas estar na encruzilhada do dia com a noite vendo o sol sair de cena sob gritos de bravo e nos amanheceres para saudar o parto da esperança. Desavergonhadamente anacrônico, sem renegar o novo, sem me ajoelhar.


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