Vozes na pandemia: Emicida e Glau Barros

Vozes na pandemia: Emicida e Glau Barros

Artistas dão alento às almas estressadas

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      A vida reclusa exige compensações. É preciso ver e ouvir o que alimenta com alegrias a alma estressada. O que teria sido de muitos de nós, inclusive deste cronista com o coração até aqui de medos, sem o streaming? A tecnologia e a ciência me salvaram o corpo e o espírito. Comi e bebi histórias a cada dia de isolamento. O melhor documentário que vi neste ano da peste foi “AmarElo”, do Emicida, na Netflix. Que show! Do samba ao rap, da escravidão aos dias de hoje, uma história da negritude e da arte no Brasil. Digo categoricamente a quem gosta de ver coisas belas: não termine o ano sem ver “AmarElo”. É maravilhoso.

      Não termine tampouco o ano sem ver as lives da cantora gaúcha Glau Barros no Youtube e no Facebook. A Glau veio de mansinho do teatro só para a música, onde se instalou feito uma rainha, e ficou de dona do campinho. Nos “50 sons da Glau” só se ouve coisa boa, o melhor da Música Popular Brasileira. Amanhã, Glau festeja os seus 50 anos com live no seu canal, às 21 horas. Antigamente revelar a idade de uma mulher era uma indelicadeza grave. Agora, não fazer isso seria um preconceito, um ato machista. Glau arrasa com Clara Nunes e muitos outros monstros sagrados. Não deixa por menos com seu repertório de “Brasil Quilombo”. Neste ano ela recebeu o Açorianos como revelação.

      No documentário de Emicida há um lado afetivo e simbólico poderoso. Ele se apresenta no Teatro Municipal de São Paulo, palco da Semana da Arte Moderna de 1922. Familiares e amigos negros pisam naquele espaço consagrado pela primeira vez. O músico não esconde o orgulho pelo que conquista para si e para os seus. Na capital de um estado potência do café, cuja riqueza foi construída com braço escravo, os pretos ainda continuam distantes dos territórios da elite branca. Emicida mostra a sua paixão pelos mestres do samba e do modernismo. Cita Mario e Oswald de Andrade. Classifica o samba como modernista. Declara todo o seu respeito por mestre Wilson das Neves, o baterista negro que marcou época com a sua elegância e versatilidade.

      Segundo dados do Relatório Mundial sobre o Índice de Qualidade de vida, o Brasil é o oitavo pior país em desigualdade. Apenas sete países africanos têm situação mais grave do que a brasileira. Triste laço com esse continente cujo capital humano saqueamos ao longo de mais de três séculos. Ficamos mais ricos em cultura graças a esses transplantados à força e não criamos até hoje uma sociedade de abundância capaz de compensar em parte o mal que fizemos. Não percebemos que o buraco da bala está na desigualdade. Emicida e Glau mostram com o que cantam o quanto devemos aos nossos construtores.

      O universalismo abstrato prega que não se deve favorecer quem quer que seja pela cor da pele. Esse tem sido um dos mecanismos mais eficazes para manter intacto o sistema que desfavorece os não brancos. Enquanto penso em paradoxos, contradições, concretudes e abstrações, vou ouvir Emicida e Glau Barros, a quem digo: obrigado e parabéns. Se duvidar, vejo AmarElo outra vez. Beleza jamais cansa. Só faz bem.


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