Foi num 23 de fevereiro...

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Livro de Javier Cercas lançado em 2012 no Brasil aborda a tentativa de golpe de estado na Espanha, nesta data, em 1981

 

Por Luiz Gonzaga Lopes

 

O livro que foi escolhido como o melhor editado na Espanha em 2009, segundo os críticos do jornal El País, "Anatomia de um Instante", lançado em 2012 no Brasil pela Biblioteca Azul, da Globo Livros (Cercas divulgou o livro na Flip em Paraty), é realmente aquilo que chamamos de reconstituição investigativa, mas também ficcional, da tentativa de golpe de estado na Espanha em 23 de fevereiro de 1981. Agradeço a lembrança desta obra ao amigo e mestre Sergius Gonzaga. É uma obra de grande fôlego e que explica um pouco de como foi conturbado o período pós-franquista no país ibérico.

 

Professor de literatura espanhola na Universidade de Girona e autor de competentes obras como "As Leis da Fronteira" e "Os Soldados de Salamina", Cercas nos coloca dentro do panorama do que foi a transmissão ao vivo por rádio e também por imagens das câmeras de televisão do Parlamento espanhol, quando o tenente coronel Tejero e o seu grupo invade o local a tiros e os deputados todos se escondem em suas bancadas, mesas, enquanto o herói por acaso, o presidente em exercício Adolfo Suárez, o vice-presidente e ministro da Defesa, general Gutierrez Mellado, e o secretário-geral do Partido Comunista Santiago Carrillo são os únicos a permanecer em pé e a não temer a morte iminente. O levante interrompeu a votação do candidato a presidente Leopoldo Calvo Sotelo, que se tornaria o novo comandante da Espanha no final daquela tarde.

 

O golpe ocorre quando os militares estavam descontentes com uma democratização exacerbada nos cinco anos pós-queda do franquismo, inclusive com o reconhecimento do Partido Comunista em abril de 1977, o que poderia significar a quebra de um pacto de fazer a transição do franquismo para o governo civil sem fazê-lo totalmente. Protagonista da transição democrática, Adolfo Suárez era oriundo da Falange e decidiu não deixar as coisas ficarem na mesma. Os três resistentes ao golpe resistem ao intento dos militares acompanhados dos guardas civis. Mellado resiste inclusive fisicamente à agressão de Tejero e dos insurgentes. O golpe foi concatenado pelo secretário do Rei, general Alfonso Armada, o comandante militar de Valência, Milans del Bosch, e executado pelo tenente-coronel Tejero.

 

Cercas nos conta que o que foi considerado "golpe duro" de Tejero, transmitido para fora do Parlamento acabou fazendo com que o rei Juan Carlos não lhes desse guarida e apoio. O franquista Tejero acabou ficando isolado. Cercas coloca os três resistentes na mira da palavra "traidor", "traidores totais" das suas convicções anteriores, franquistas: Suárez traiu a herança de Francisco Franco; Carrillo, o comunismo; e Gutiérrez Mellado, ao Exército. Estas "traições" foram decisivas para a abertura democrática na Espanha. Sobre Suárez, o autor explica quais foram as causas da derrocada pré-golpe: "Eu já apontei uma causa do seu súbito naufrágio: Suárez, que soubera fazer o mais difícil - desmontar o franquismo e construir uma democracia -, não era capaz de fazer o mais fácil - administrar a democracia que tinha construído -; matizando um pouco: para ele o mais difícil era o mais fácil e o mais fácil era o mais difícil. Isso não é só um jogo de palavras: embora não tivesse criado o franquismo, Suárez havia crescido nele, conhecia perfeitamente suas regras e as usava com maestria (foi por essa razão que conseguiu acabar com o franquismo fingindo que só estava mudando as regras); em compensação, não obstante tivesse criado a democracia e estabelecido as suas regras, Suárez não lidava bem com ela, porque seus hábitos, seu talento e seu temperamento não eram feitos para o que tinha construído, e sim para o que tinha destruído. Esta foi ao mesmo tempo sua tragédia e sua grandeza..."

 

Sobre os motivos que o levaram a escrever este livro, Cercas disse no prólogo: "Tentar entender esse gesto ou essa imagem é tentar responder à pergunta que me fiz quando, em um 23 de fevereiro, senti presunçosamente que a realidade me pedia um romance; tentar entendê-lo sem os poderes e a liberdade da ficção é o desafio que este livro se propõe". Desafio aceito e prazerosamente sorvido pelo leitor que vos fala e espero que por todos que tenham acesso a este livro.

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