Mil e uma formas de ouvir histórias

Mil e uma formas de ouvir histórias

Literatura oral pode ser apreciada em diferentes formatos, seja pela tradicional contação de histórias ou pelos novos audiolivros.

Correio do Povo

Carmen Lima trabalha há oito anos como contadora de histórias

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*Mariana Barcellos (6º semestre Ufrgs)

Reza a lenda que, no antigo reino da Pérsia, uma rainha chamada Sherazade conseguiu escapar da morte apenas contando uma história ao tirano rei Shariman, em uma narrativa tão envolvente que durou mil e uma noites. Três mil anos depois, a humanidade continua fascinada por literatura oral. Histórias de ninar, radionovelas e audiolivros são formas de praticar um velho hábito humano que mobiliza nossos sentidos, nos levando a um passeio pela imaginação.

O tema da sessão infantil da 65ª Feira do Livro de Porto Alegre é Literatura Oral: a Palavra como Patrimônio. Num momento em que surgem questionamentos sobre a continuidade do livro impresso, o evento propõe uma reflexão sobre histórias orais, que continuam presentes no nosso dia a dia. 

“A literatura oral é o berço da literatura para o ser humano. A temática da Feira busca estabelecer uma ponte, uma acolhida ao leitor. Vemos que muitas famílias buscam conhecer mais livros após ouvirem a história oralizada”, explica Ana Paula Cecato, organizadora da sessão infantojuvenil da Feira do Livro.

Sessões na Tenda das Mil e Uma Histórias receberam escolas. Foto: Mariana Barcellos/Especial CP

A Tenda das Mil e Uma Histórias se propõe a contar histórias infantis todos os dias a grupos de, em média, 70 crianças. Sessões abertas ao público acontecem neste sábado e domingo, manhã e tarde. A Feira também promove eventos de valorização da literatura oral como expoente da cultura popular. No sábado, às 19h, o grupo Poetas Vivos faz uma rodada de slam poetry - uma forma de declamação de poemas inspirada na periferia - na Tenda das Mil e Uma Histórias. 

A arte de ouvir histórias

As narrativas orais nos cativam porque são as primeiras formas de literatura com a qual nos envolvemos na infância. A contação de histórias pode ter efeitos tanto afetivos quanto intelectuais sobre o desenvolvimento da criança, conforme explica a professora da Faculdade de Educação da UFRGS Tânia Marques: “Acontecem aprendizagens importantes como a de se colocar no lugar do outro, de entrar no mundo do faz de conta, de ouvir, de esperar a vez, de vocabulário, de diferentes formas de expressão e de manifestação, de diferentes estilos de narrativas, de expressão oral e gestual, de identificação com os personagens na forma de enfrentar e solucionar problemas”. 

Para Tânia, a experiência de ouvir histórias se difere da leitura individual. “A mesma história é vivenciada com sabores diferentes conforme for lida ou ouvida. O contador empresta algumas características aos personagens, mostrando elementos de fala e gestuais que podem ser usados na comunicação.”

Um hábito antigo em novo formato

Hoje, há novas formas de se ouvir histórias. Podcasts em formato storytelling e audiolivros são exemplos de como se pode ouvir boas narrativas pelo celular. De acordo com a Association of American Publisher, o setor de audiolivros é o que mais cresce em relação ao resto da indústria editorial desde 2013. Somente entre 2017 e 2018, a venda deste tipo cresceu 37,1%. 

No Brasil, este setor ainda é incipiente. Na última pesquisa IBOPE Retratos da Leitura no Brasil, apenas 12% dos entrevistados afirmaram consumir audiolivros ao menos uma vez por mês. Para acessar o formato, há serviços de assinaturas mensais disponíveis para download pelo celular, destacando-se o Ubook, o Tocalivros e o Storytel.

Para Tânia Marques, a contação de histórias presencial e virtual pode auxiliar a desenvolver diferentes habilidades. “Na leitura, criamos em nossa própria cabeça algumas características dos lugares e dos personagens, o que é muito importante no desenvolvimento da imaginação. A contação presencial permite uma maior participação, porém a mediação por aparelhos possibilita acesso em qualquer hora e lugar”, opina.

A tenda da imaginação

Localizada em frente ao Memorial do Rio Grande do Sul, a Tenda das Mil e Uma Histórias recria um palácio persa, com tapetes e móbiles em estilo árabe. Os contadores de história não ficam de fora da ambientação, vestindo-se com calças estilo Aladim, coletes e chapéus adornados. Carmen Lima se caracteriza como Dinazade, a irmã de Sherazade, e escolhe pessoalmente as narrativas que vai contar. “As histórias tem que fechar contigo. Primeiro tu tens que entrar na história e acreditar naquilo.”

Prender a atenção da criançada não é difícil. A cada reviravolta na história, as crianças conversam, riem, se envolvem. E não são só elas. “Isso aqui faz bem para crianças e para adultos. É difícil manter a concentração das crianças e elas estavam amando... e eu vibrando também”, conta Roberto Relim, que levou o filho Lucas, de 4 anos, para a sessão na tenda.

 “Os mais velhos largam os celulares, o olho brilha e vem o encantamento. A gente percebe que eles param a vida corrida para se entregar à contação”, ressalta Carmen, que busca valorizar a oralidade nas sessões. Adepta do olho no olho, do chá ou café em casa, da conversa tête-à-tête, ela explica: “A oralidade é a coisa que mais une, mais agrega”. Desde pequena, mesmo que talvez não soubesse, já era uma contadora de histórias. E, desde então, plantadora daquela sementinha da imaginação e do contato presencial.

Lucas gosta de ouvir histórias do pai Roberto antes de dormir. Foto: Mariana Barcellos/Especial CP

 


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