A Boneca Mutilada

A Boneca Mutilada

Especial 10 anos da coluna de Oscar Bessi: seleção de cinco textos publicados entre 2010 e 2020.

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(Publicado em maio de 2012)

 

O Inspetor Ângelo Salvattore detestava seu nome e encarou o advogado com desprezo. Teve vontade de dizer que nunca salvou ninguém, nem coisa nenhuma, nesta vida sem sentido. E para anjo não servia. Definitivamente. Então, que o chamasse apenas de policial.

- Que seja. Mas o senhor entende? Melhor deixar como está, consigo um laudo médico. Fica no B.O. Nestas condições, pode ser precipitado e desastroso. A família precisa ser preservada.

O policial olhou por cima do ombro do homem jovem e bem vestido. Lá fora, a Conselheira Tutelar caminhava de um lado para o outro, aflita, no pátio da delegacia. Pendurada no celular e tentando contato com parentes que não queriam ser localizados, que não queriam saber da criança, que se recusavam a falar sobre o assunto. Como se a responsabilidade não fosse deles. Pais? Não existiam. Pai morto, mãe presa. Coisa de tráfico. Um lar substituto, de família tradicional, parecia uma saída. Parecia.

A menina estava sentada no chão. Seis anos. Brincava com uma boneca, refugiada em seu mundo paralelo. Ângelo desviou os olhos da criança e olhou o calendário na parede da DP. Dezoito de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Era menino, ainda, quando em 18 de maio de 1973, Araceli Cabrera Sanches, então com oito anos, foi sequestrada, drogada, espancada, estuprada e morta por membros de uma tradicional família capixaba. Ninguém foi punido pelo que aconteceu.

- Vou conversar com você. Tudo bem? – ele perguntou, ao se agachar ao lado dela, tentando uma aproximação que nem ele mesmo sabia como fazer.

O advogado se afastou para atender o celular. A menina não respondeu. E não se mexeu mais. Apertou os lábios, os olhos perderam seu resquício de brilho, as mãos se crisparam. A boneca, sem pernas, foi deixada de lado.

O policial ficou olhando o brinquedo. E, de repente, entendeu porque não precisava perguntar sobre a faca no pescoço do homem em sua casa, sobre de onde ela teria tirado forças, se mais alguém a ajudara, ou o porquê do sujeito estar nu sobre a cama. Não. A resposta estava ali, na boneca. Nas pernas arrancadas com raiva, com culpa, com nojo.

- Foi você? – ele perguntou, apontando as pernas que faltavam.

Ela apenas chorou em silêncio.


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