Caso Kiss: a humanidade do magistrado

Caso Kiss: a humanidade do magistrado

Oscar Bessi

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Sexta-feira, 10 de dezembro de 2021. Após dez dias de emoção e expectativa, o Rio Grande do Sul parou para ouvir a sentença do julgamento mais longo da história gaúcha. E, cá entre nós, ouvir o juiz Orlando Faccini Netto foi uma aula de humanidade e coerência. De justiça. Quase nove anos de espera, desde a tragédia que comoveu o mundo. O incêndio na boate Kiss. E nós, tão calejados de nos sabermos povo brasileiro, tantas vezes desamparado, ignorado ou até desprezado nos seus mais simples e legítimos anseios, tínhamos medo. De que tudo desse em nada. De que nosso sentir se esvaísse num desfile de verborragias incompreensíveis e malabarismos burocráticos. Não. A sentença tinha 43 páginas, mas o juiz teve o tato, o zelo de ler apenas, de forma clara, o que era fundamental dizer aos famíliares das vítimas, aos envolvidos no processo e ao mundo que assistia com um nó na garganta.

São tantos trechos dignos de nota, na sentença, que eu precisaria escrever um livro inteiro só para comentar a profundidade e a relevância do que foi dito. Mas um momento, em especial, da leitura que eu assistia ao vivo, me tocou: “Este muito, cumpre enfatizar isso, não lhes foi retirado por obra do acaso, por um raio, um terremoto, um tufão ou furacão: tratou-se de obra humana, a exigir do Estado o chamamento à consequente responsabilidade”. É isto. Todos concordam, nenhum dos réus saiu de casa naquela noite decidido, como um bandido, a matar pessoas ou feri-las pelo simples desejo de assim agir, por sua natureza ou opção criminosa. Mas a tragédia aconteceu. Porque pessoas agiram de forma incorreta, ou se omitiram, facilitando o triste resultado. Mesmo que imprevisto. A ação, que dá início a tudo, é o mero esquecer de pensar no seu semelhante antes de tudo.

Das lições que deveriam vir do caso Kiss, vemos que muito pouco mudou nosso jeito de pensar e agir enquanto coletivo ou indivíduos. O carnaval de 2021 e o desrespeito aos cuidados em plena pandemia mostraram isso: a irresponsabilidade confundida com diversão, o dar de ombros a cuidados mínimos na ode ao instante, as tantas mortes e dores que vieram depois. Um dia, talvez, aprendamos que, mesmo em casa, devemos cuidar até como deixamos a ponta da mesa, o copo de vidro ou pontas de faca se temos crianças. Que prédios de órgãos públicos não podem ficar com fiação velha e exposta colocando servidores em risco. Que eventos precisam divertir, mas antes de tudo preservar os semelhantes, antes de lucrar. Que uma estrada não é só para a velocidade do meu carro. Que em tudo há o outro, e este outro é tão importante quanto o meu umbigo. Quiçá um dia nos tocaremos disso desde os nossos pequenos atos cotidianos até, e por consequência, aos mínimos detalhes nos eventos que promovermos. Quem sabe teremos dias com menos tragédias. Com menos lágrimas ao nosso redor. 


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