Dias de ontem e de hoje

Dias de ontem e de hoje

Oscar Bessi

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“Dias de água”, de Luís Dill, é um desses livros que depois que a gente abre não consegue mais parar de ler. O cenário ou poderíamos dizer, a personagem principal, é a grande enchente de 1941, em Porto Alegre. E uma série de dramas, tramas, mistérios, intrigas, conspirações, desesperos e até crimes se cruzam no desfile tão realista quanto intenso de várias vidas tão diferentes entre si, mas com intersecções surpreendentes. Que testam o fôlego do leitor, enquanto as águas do Guaíba sobem para compor aquele que se tornaria o maior embate da capital gaúcha contra a natureza em toda a sua história. Dill é um dos maiores escritores brasileiros dos nossos tempos. E o que sempre me impressiona, nestes mais de 30 anos da sua carreira de sucesso como escritor, com mais de 60 livros publicados, é que, apesar da qualidade, da narrativa impecável, lapidada e sempre bem construída, ele é um mestre em criar histórias acessíveis a qualquer leitor, de qualquer nível, com qualquer idade, numa linguagem simples e direta. Basta ter vontade de acessar um bom livro. Então escolha um Luís Dill, que não se arrependerá.

Mas dois pontos me cativaram de forma muito especial, em “Dias de água”. A primeira é a, digamos, “participação especial” de um personagem verídico. Plínio Brasil Milano. Logo que cheguei para trabalhar em Porto Alegre, patrulhar a avenida que levava este nome me suscitava um certo fascínio. “A Plínio” era o símbolo de uma Porto Alegre que me instigava. Seu movimento intenso, seus prédios, seu pulsar vibrante entre o charme e o caos. Eu nada sabia sobre quem lhe dava o nome e fui pesquisar. Descobri, com algum espanto, se tratar de um policial. O delegado Plínio foi um dos pivôs do esquema de defesa civil durante os dias trágicos entre maio e junho de 1941, protagonista do esquema de socorro às milhares de vítimas e até mesmo a punição dos que tentaram se beneficiar com o sofrimento alheio, outra passagem muito bem apresentada no livro de Dill.  Aliás, o hoje patrono de Polícia Civil, organizou, praticamente sem recursos, um serviço de contraespionagem que acabou com uma rede nazista que operava no país, além de terminar com um macabro esquema de tráfico humano. O promissor delegado, cuja genialidade chamou a atenção até do FBI, morreria três anos depois, em 1944, com apenas 36 anos.

Outro ponto que me fez pensar, no livro, foi a atualidade de certos temas, tão caros à época. Vizinhos trocando ofensas e socos por questões de política partidária (hoje muitos socos são virtuais). Ideologias, como o nazismo, instigando fanáticos e intolerantes, mas também cooptando outros seguidores, talvez não tão afeitos assim ao ódio em nome de suas bandeiras, mas que seguem, meio sem saber o porquê. A fome, o medo, a exclusão. Oitenta e um anos depois, vivemos os mesmos dramas. O Guaíba não invade mais o centro da cidade, mas a natureza, volta e meia, castiga nosso jeito irresponsável de viver. Os dias seguem adiante e, pelo visto, pouco aprendemos com nossos próprios erros. Seguimos matando e morrendo por nada. Seguimos submersos em nossos equívocos de amor e ódio. Seguimos, enfim, sendo apenas humanos e imperfeitos, como os personagens deste belíssimo livro. 


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