E o que fizeram com nossas lutas?

E o que fizeram com nossas lutas?

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Na minha juventude, quando se acreditava num sonho chamado da democracia, talvez fôssemos ingênuos. Porque também acreditávamos no monstro do Lago Ness e no nascimento do bebê atômico. Mas apostávamos nalgum idealismo. Em revoluções possíveis, na sociedade igualitária, na diminuição das diferenças e das injustiças, na liberdade de expressão como instrumento de cidadania e crescimento coletivo e etc. Eram bandeiras. Belas bandeiras. E nossos heróis eram aqueles que, com o preço da vida ou pelo menos do desemprego, enfrentavam a tirania vigente.

Mas Elis Regina anunciou: "vem aí uma ditadura pior, mascarada". Ela talvez quisesse falar apenas sobre uma nova onda que utilizava o massacre mental, a insistência e a imposição de modas como ditadura de costumes, inclusive na arte a ser vendida ao povão. Só que ela disse muito mais que isso.

Dia desses, ao deixar escapar um suspiro saudosista pelas convicções de outrora, ao assistir essa suruba ideológica onde ninguém mais parece significar nada nem coisa nenhuma, onde discursos são iguais e as práticas criminosas também, à direita e à esquerda, alguém tentou me consolar. "Decepção é coisa da idade, acontece com todo mundo. Na juventude, a gente vibra à flor da pele, é revolucionário por natureza. Depois a gente vê que é tudo utopia, vem a desilusão, aí a gente larga a ideologia pra lá e passa a se importar com reumatismos, a pressão, o nível de triglicerídeos e o futuro incerto dos filhos".

É. Eu era pura vibração. Gana. Discursava com o punho mais fechado que o Éder Jofre ao entrar no ringue. Era, lá do meu modo, o dono da verdade. Escrevia poemas às pencas sobre o que pensava, sentia-me ativo, alguém para fazer a diferença ao lado de outros tantos.

Até que, para o bem da humanidade, me dei conta de que tudo o que eu pensava e escrevia era utópico demais. E eu não servia para ser poeta.

Fiz um teste,dia desses. É que gosto de ir a escolas bater papo com adolescentes sobre essa coisa toda da vida, do respeito ao próximo que nos falta, das possibilidades que temos sem precisar pisar sobre a cabeça uns dos outros, sobre o ser que é mais importante que ter. Indaguei um grupo de adolescentes sobre suas ideologias e lutas. Nem vou transcrever as respostas, não esperava algo tão desestimulante.

O que houve com a vontade de mudar o mundo?

Então vi que, menino, eu era apenas discurso. E os meninos de hoje parecem mais informados e não perdem tempo com sonhos pueris. E me dei conta de que só virei um sujeito ideológico, de verdade, ao entrar na polícia. Quando decidi ter lado e meu lado não admite parceira com criminoso. Nem conchavo, nem acerto, nem aperto de mão. É um para cada lado e isto está bem definido.

E me descobri ainda mais ideológico depois que me tornei colunista de jornal, desse grande e histórico jornal chamado Correio do Povo, e percebi que escrever não pode ser um exercício de ego, mas um instrumento de auxílio, um compromisso, um abraço à humanidade. E que isto não pode estar escravizado a uma sigla partidária. Se estiver, não é ideologia, é servilismo mercenário. Ou nada além de um bom negócio de vendedores de livros. Capitalismo umbilical e só, coisa de panelinha, quase sempre sem conteúdo.

Quando arregacei as mangas, policial ou escritor, aí finalmente consegui ver no espelho um sujeito que luta. Um idealista. Como tantos outros, conhecidos e não, professores, poetas, operários, estudantes, agricultores, empreendedores. Porém, todos nós parecemos estar numa ilha, cercado de forças gigantescas, prepotentes e arrogantes, sedutoras e impositivas, empenhadas em nos fazer desistir, ou se entregar, ou se vender.

Onde foram parar nossas lutas? Por que nos decepcionaram tanto, logo aqueles que nos fizeram acreditar em algo?

Talvez - e eu uso demais essa palavra, pois não sou dono da verdade, jamais tentarei ser - tudo isto sirva para nos tornar ainda mais fortes. Mesmo que tão amargos, hoje, de mágoa. Mas fortes amanhã. Que de tanto arregaçar as mangas, todo dia, na tentativa hercúlea de limpar o pesado lixo social e moral que nos cerca, quem sabe estamos ficando preparados para os dias melhores que, de fato, merecemos.

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