Em segundo plano na própria vida

Em segundo plano na própria vida

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Se a rotina bater à sua porta, fuja. Rotina é um mal pior do que o crack. Destrói lares. Destrói pares. Acaba com o ímpar. Deixa passar mais coisas que a zaga do Internacional, é mais insustentável que modéstia de político. A rotina é lápis-borracha que rouba a cor. O aroma. E atropela o tempo, envelhecendo tudo mais rápido, até o que parecia jamais envelhecer.

Cuidado. Ela chega invisível, a rotina. Quando vê, ali está. Impregnada. Pesada. Sinistra. Nalgum momento, ninguém percebeu, mas ela entrou. E foi pura distração. Pode ter sido naquele instante em que um olhar deixou de ser visto, girou esquecido no espaço aberto que vira abismo e nem se cogitava que pudesse existir, então perdeu o brilho no vazio das distâncias.

Nunca mais voltou.

Não com a mesma força.

A rotina pode ter chegado no momento em que a matemática abafou a literatura, os cálculos sufocaram a poesia e a ciência autografou definitivamente sua tese. De que o ser humano é pura, e tão-somente, e infelizmente, essência racional. Sem chance ou competência para mais.

Quando a rotina se instala, o elogio vira crítica. O especial fica vulgar. O único vira maldito. O detalhe, que se percebia, e se amava, nem mais se vê. E talvez não se pense no outro como se pensava antes, não se lembre mais do outro no momento inusitado ou a cada instante, e não se queira freneticamente estar junto outra vez como um dia se quis. Porque estar junto outra vez agora é mera formalidade lógica, inevitável, costumeira.

Quando a rotina chega, ela coloca cartão-ponto na sua intimidade.

Talvez você insista: não conhece a rotina, soube evitá-la. Que bom. Pois, quando a rotina chegar, teu filho não será idolatrado em suas mínimas descobertas. Não receberá um sorriso largo por qualquer palavra. Não ouvirá nada além de uma crítica por ter optado por algo, se sempre havia o melhor que só você sabia. Não terá o encanto que é gratuito e mágico e mora nos lábios dos que amam. Só que filho nenhum será grande o suficiente nesta vida para ser órfão desse carinho especial que só você pode dar. Porque é filho. Seu filho.

A rotina é fatal. Ela deixa em segundo plano as tuas melhores possibilidades.

Ela te deixa em segundo plano na tua própria vida.

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Correio do Povo
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