Eu já tinha lá minhas ressalvas com quem anda com dois celulares. De que adianta dizer que um é de trabalho e outro pessoal se em casa, numa tarde de domingo, resolve demandas de serviço e no escritório, em plena reunião, responde mensagens da esposa? Não era mais fácil fazer como antigamente e apenas respeitar o tempo e o lugar de cada coisa? A saúde mental agradeceria. Dias atrás, um homem foi preso em Porto Alegre usando duas tornozeleiras eletrônicas. Sim, duas. Dois monitoramentos. Dois processos. Dois crimes. E, pasmem, ainda assim foi preso pelo quê? Por estar cometendo novos crimes!
A descoberta provocou estranheza nos policiais. E a notícia, logo que se espalhou, gerou debates. “Fakenews”, resmungou alguém. “Uma é chinesa, ou paraguaia.”, arriscou outro. “Nada a ver, é souvenir, já tem até em sexshop”. A turma dos protestos chegou a produzir faixas e camisetas, pedindo uma distribuição mais justa e igualitária de tornozeleiras para o povo. Tatuadores e esteticistas anunciaram modelos ousados e mais extrovertidos em suas redes sociais. Porém, a verdadeira ironia disto é que elas são, hoje, o símbolo máximo da vigilância humana. É o Estado dizendo: “estamos de olho em você”. Neste caso, era olho demais e atenção de menos: com longa ficha criminal apesar da pouca idade, incluindo homicídio, o sujeito foi preso (de novo!) num esquema de roubo de celulares. Na matemática criminal dele, tornozeleira mais tornozeleira dá liberdade para delinquir.
Há algo de profundamente simbólico nesse episódio. Vivemos num tempo de duas morais, dois discursos, duas faces. Usamos um crachá no trabalho e outro nas redes sociais. Postamos frases sobre honestidade e furamos fila no mercado, no trânsito, compramos produtos sem procedência achando que somos espertos e falsificamos do leite ao trago. O homem das duas tornozeleiras é só uma metáfora viva do nosso tempo: monitorado, vigiado, conectado – mas, mesmo assim, livre para cometer crimes. E convicto de que não seria pego.
No fundo, o que temos é mais um retrato melancólico da nossa ineficiência. Colocamos tecnologia, mas esquecemos o fundamental e básico: a consciência. Enchemos o mundo de câmeras, satélites e sensores, mas o que falta mesmo é o monitoramento interno, aquele que não apita, mas dói: o da vergonha, da ética, do senso de limite. O rapaz de duas tornozeleiras – e foi explicado, sim, é possível, e há mais de um caso, mesmo que pareça um bizarro desperdício - não é apenas um personagem curioso da crônica policial. Ele é um espelho do que somos. Do óbvio que parecemos não ver. Afinal, se com duas tornozeleiras um sujeito consegue sair por aí aprontando, cometendo violências, é porque o conceito de “não dá nada” está cada vez mais forte.
