O silêncio das vítimas

O silêncio das vítimas

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Uma ossada humana encontrada seis décadas após o crime e um policial cheio de problemas pessoais para investigar o caso. No mais, o descortinar de histórias tão feias quanto reais sobre mulheres vítimas de violência, escravidão, crueldade e submissão, o desprezo formal da sociedade que transforma vítimas em culpadas e o quanto isto aniquila vidas inteiras. Falo do romance traduzido no Brasil como “O silêncio do túmulo”. Nele, o escritor islandês Arnaldur Indridason mergulha fundo no drama da violência doméstica.

Por aqui, cito como expoente em nossa literatura o impecável “A ponta do silêncio”, de Valesca de Assis. Um livro denso e realista, que chama à reflexão após cada página virada e transpira emoções ao leitor em cada palavra lida. Gosto da parte onde Marga, a personagem de Valesca vítima de violência doméstica, é jogada às feras pela opinião pública após a morte do marido, mesmo que nem a polícia ainda tenha ideia do que aconteceu. E aí está o grande medo, o grande ponto. O gigantesco e quase invencível “silêncio”, presente no título dessas duas obras ímpares e nas vidas de tantas vítimas aqui, ao nosso redor.

Esta semana, A capitã Clarisse Heck, coordenadora técnica da Patrulha Maria da Penha na Brigada Militar, mostrou números impressionantes. Ano passado, foram 18 mil mulheres atendidas pelo programa em apenas 27 cidades do RS. Um grande público, sem dúvida. E um trabalho fantástico da BM. Uma pena que a esmagadora maioria dos municípios gaúchos ainda sofra com falta de efetivo de policiais militares, situação que deve e precisa ser reparada com urgência. Uma demanda tão importante quanto esta não pode ficar travada na ausência de material humano. E é preciso o ser humano, o policial qualificado, pois não se admite que algo tão delicado seja feito na corrida entre outras mil atividades. Precisa sim é ser bem feito, com a dedicação e importância que o tema merece. Temos mais 470 municípios na espera. E milhares de mulheres em silêncio.

Foi bacana a iniciativa do Poder Judiciário, na semana da mulher deste ano, quando 82 presos provisórios de Porto Alegre, enquadrados em crimes da Lei Maria da Penha, participaram de dinâmica sobre o tema. Eles falaram sobre o que sentiam ao estar naquela situação. E neste evento a Capitã Clarisse deixou uma frase fantástica àqueles homens: “O pior adversário é você mesmo”. Sim, é preciso mudar o eu, o agir, o pensar. Modificar essa nossa cultura de machismo intrínseco - que, ao lermos Indridason, percebemos ser tão histórica quanto europeia também – e que reverbera, feliz e arrogante, dos comerciais de cerveja às piadas ensinamos aos nossos filhos todos os dias. Precisamos é não precisar de Patrulhas Maria da Penha. Mas o caminho é longo. Bom que já estamos nele.

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