Que tiro foi esse?
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Francamente, não me agrada esse castigo que faz nosso povo ter que rir de seus dramas para não chorar. É isso, então? Vamos nos resignar e dizer “bem-feito, somos pobres, não somos cúmplices dos donos do poder e suas tramóias, não temos mordomias nem segurança privada, então vamos morrer de tiro e achar muito engraçado”. Podem me chamar de careta (ainda chamam alguém de careta?). Quem tem os pés no chão sabe, a pergunta “que tiro foi esse?” é repetida várias vezes ao dia, numa reação instintiva, em milhares lares, trabalhos e escolas deste país. Pânico na lembrança de alguém muito próximo que se foi, brutalmente, e a desconfiança de que, a qualquer momento, mais um pode partir. Porque todo dia alguém se vai. Não vejo graça na música e na coreografia que faz escárnio do que dilacera tantas famílias. Jovens e crianças, pais e mães, levados por um tiro. Passeatas pedem paz, providências, choram ausências. Aí vamos cantar “que tiro foi esse” só pra se jogar na piscina? Talvez quem nunca perdeu alguém na guerra brasileira. Ou perdeu, mas nem se importou com isso.
Enfim, é arte. Retrato do que somos. Aí lembro de outra música que, embora retrate quase a mesma realidade, não brinca com isto, então gosto mais: “vivo sem saber até quando ainda estou vivo, sem saber o calibre do perigo, eu não sei d’aonde vem o tiro”. Ela critica gestores públicos, suas promessas esquecidas e seu desdém ao caos. Fato. Vemos lideranças políticas brigarem por conchavos, possibilidades e dividendos da próxima eleição, nem aí para o que nos aflige. Nosso sangue e nossa dor não estão na pauta. Mas estarão no discurso de quem pedirá nosso voto. Espero que aí alguém interrompa, cantando “que tiro foi esse?”.
(Coluna de sábado 10/02/2018)