Sorvete expresso, símbolo do Centro

Sorvete expresso, símbolo do Centro

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Nada mais calorento que o centro da cidade nesses dias de dezembro. E não é apenas culpa do sol. O correrio da humanidade às vésperas do Natal e da despedida do ano é algo abrasivo cá em nossas terras. O calor se multiplica entre os prédios e a multidão. Há qualquer peso que abafa, queima as narinas, escancara os poros e empapa as roupas. As lojas lotadas, as filas, os bancos e as lotéricas, os gritos dos vendedores de tudo, as músicas altas nas portas das lojas – competindo, talvez, qual o volume mais alto e a melodia mais irritante -, os ambulantes te disputando aos esbarrões. Impaciência e agonia. E não é porque estou ficando velho. Nunca tive simpatia por muvuca.


Quem falou em crise, mesmo? Que povo é esse que, mais desempregado e endividado do que no ano passado, com mais governos lhe passando cada vez mais a perna, com a inflação oficial escandalosamente abaixo do aumento real dos preços, eu povo é esse que mesmo numa pior ainda lota os centros de consumo em números impressionantes?


Eu não entendo a lógica da economia popular. Eu só me apavoro.


Paro em frente a uma maquininha que anuncia sorvete expresso italiano. E me pergunto há quantos anos não peço uma casquinha de chocolate com creme, ou morango e nata, ou os novos sabores que me impressionam, pois no meu tempo de criança com a mãe não existia. Lá nos anos 70 ela me levava pela mão ao centro depois de desembarcar do ônibus em tons de azul da linha Liberal-Tristeza para fazer compra das Lojas Brasileiras, ou no Mercado Público, ou no Palácio dos Enfeites, ou na Americanas que tinha aquela fantástica e inovadora "escada rolante", e depois a gente comia sorvete de casquinha da máquina. Chocolate ou morango. Não havia essas opções todas de hoje, com leite condensado, uva, milho verde e por aí vai.


Compro um sorvete. Tem fila e eu espero. Quase desisto, mas espero. Depois, sentindo o sabor refrescante, penso que aquele sorvete é o sabor do centro. Do sacrifício e da batalha contra o calor que exige uma trégua e essa pausa é o sorvete expresso. Ele é universal como a sede e o cansaço de um centro no verão. Quem vai ao Centro e não pede um sorvete numa maquininha qualquer, não foi verdadeiramente ao Centro.


Eu me abrigo numa entrada de galeira. Uma menina de uns 13 anos para na minha frente e grita: “Não acredito! O escritor comendo um sorvete de casquinha!”. Ela me abraça e diz que fui na sua escola, que leu meu livro porque a profe mandou (eu me sinto mal com essas ordens, preferia que fosse por livre escolha) e que gostou muito, achou divertido (nessa parte eu me perdoo por ter aceito a “imposição” da profe). Comentamos sobre como é bom o sorvete, ela diz que prefere o de milho, me pergunta se vai ter livro novo e pede até continuação da história, com direito a sugestões e tudo. Prometo anotar e sou sincero, gostei das ideias. Ela some saltitante na multidão e eu lamento duas coisas. Uma, não perguntar seu nome, para agradecer caso escreva a nova história. Outra, não ter mais saco pra ser saltitante no verão.


Termino minha casquinha, tenho vontade de mais uma e decido provar a de milho. Mas a fila está muito grande. Desisto. Encaro o ar brasino que leva minha angústia à ebulição e me jogo no oceano de impaciências frenéticas. Sou mais um nada no meio de tudo. Pelo menos com o gostinho do sorvete por horas ecoando na alma. 


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