Talvez em outra vida, Mirella

Talvez em outra vida, Mirella

Oscar Bessi

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Eu queria ter a chance de me despedir de ti, Mirella. Mais que isso, eu queria ter tido a chance de te explicar que é assim mesmo, sem sentido, sem que possamos compreender a razão de certas coisas. Porque essa tal injustiça é tão forte e se alimenta todo dia de nossas lágrimas. Porque certas portas nunca se abrem, certas tempestades nunca passam e tantas chances são negadas já ao nascer para tanta gente que não tem, sequer, a chance de argumentar, poxa, mas eu não fiz nada, por que tenho que passar por isso? Não, Mirella, não fizeste nada de errado. Estavas aqui, com a gente, merecias chegar num ponto qualquer da estrada, não importa em que direção ela te levasse, só não podia ter terminado assim, no teu início. Como Bernardo, Isabela e tantos outros. Não tiveste a mínima chance.

Sabe, Mirella, por mais que tentemos encontrar, não temos respostas para diversas perguntas. Elas fogem da compreensão do que pode ser normal, ou até mesmo do que é anormal e aceitável, nesse nada retilíneo e uniforme comportamento humano. Sei, Mirella, querias pelo menos entender. Mas quem entende? Que espécie de gente é essa que se torna capaz de machucar, de agredir, de torturar uma criança? Quem são essas pessoas que conseguem acabar com a vida de um pequeno anjo, feito tu, indefeso, inocente, tão linda e ao mesmo tempo tão pequena e frágil? Eu queria decifrar esse triste mistério só para poder te contar. Mas não sei, Mirella. Sou pai. Criança e amor se fundem no meu peito como uma coisa só. Então é difícil não chorar quando penso em ti, Mirella, e as palavras travam, o pensamento turva, a compreensão e a fé ficam abaladas. 

Não sei o que acontece quando a gente parte. Mas talvez em outra vida, se ela houver, a gente se encontre, Mirella, e então eu possa ter a chance de te oferecer um colo, uma mamadeira morninha, um aconchego. Uma proteção qualquer para que tu possas sonhar livre, na tua pureza de criança, e a gente ache graça juntos dos monstros que ficaram nos desenhos e livros, não nas sombras de tua própria casa em forma de ódio e medo. E então eu possa te contar sobre as bonecas que não tiveste a chance de desejar, sobre os parques que jamais conhecerás, as canções animadas que tua voz nunca poderá entoar entre amiguinhos na escola. E eu possa te mostrar um poema que escrevi sobre saudade e ele será apenas um suspiro bom, não uma tragédia, uma barbárie, uma notícia triste. Não o vazio e o breu e o silêncio. O injusto silêncio aqui onde deveria estar teu choro de birra por mais um doce, onde deveria ecoar tua gargalhada com as peripécias de um cachorrinho risonho que te amaria demais. Talvez em outra vida, Mirella, exista uma chance. Porque na única que tiveste, na única luz que poderia ter acendido em teu caminho e talvez te salvo, parece que o agente público que deveria, por obrigação de ofício, ir verificar o que estava acontecendo, deu de ombros. E te deu as costas. Foi quase, Mirella. Quase. E por este quase, seja nossa luz. 


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