Um beco escuro

Um beco escuro

Oscar Bessi

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O medo é um beco estreito, escuro e frio. Entorpece o corpo e dilacera a alma, asfixiada por uma certeza cruel, ainda que efêmera, de que não há mais volta. O medo é um abismo. Um soco gigante e invisível que nos turva sentidos e distorce a realidade. Já a confiança é um colo. Calor de aconchego, acalanto. Uma estrada larga e ensolarada que nos permite a ousadia de flanar com liberdade e sorrir, sem receio, permitindo-se apostar no sonho e acreditar na esperança. E se entregar ao momento seguinte de coração desarmado. É com esta confiança, plena, que mulheres, no mundo inteiro e através dos séculos, entregam às mãos de outros o instante mais mágico da existência: o nascer de um filho. E nossa evolução trouxe ciência e tecnologia para que a magia do parto se tornasse ainda mais segura e confortável para as mamães. Para a confiança ser ainda maior. Aí, de repente, a gente se depara com a notícia do médico anestesista que abusava das mães nesta hora. Então é como se a estrada da confiança se fechasse de repente. Pesadelo. Queda repentina no breu do horror.

Na mesma estrada de confiança, mães levavam seus filhos autistas a uma fonoaudióloga no interior de São Paulo. Tantas campanhas para despertar a compreensão da sociedade em relação ao autismo, estimulando aceitação, inclusão e a busca de tratamento adequado. Porque um bom tratamento traz sempre a esperança de um futuro com mais dignidade. Aí, justamente a profissional procurada para ajudar, tortura seus pequenos pacientes? Crianças! Algumas em idade de usar fraldas, submetidas à violências sem explicação! Nos dois casos, no do monstro anestesista e neste, não há nenhuma possível explicação que consiga justificar o tamanho da barbárie cometida. O pior é esta desconfiança de que ambos talvez nem paguem, de fato, à altura pelo mal que fizeram. Nessas horas, a indignação flerta com a irracionalidade, ao ansiar por justiça. Porque é horroroso demais tudo isso. Inaceitável.

Anda complicado ter fé na humanidade. Mas ainda precisamos acreditar que há uma esmagadora maioria, anônima, de gente incapaz de fazer mal ao próximo. Eles apenas não estão se exibindo nas redes sociais, não fazem gritaria nas ruas para chamar a atenção e não se metem em confusão. Cumprem seu papel. Muitas vezes até além das obrigações diárias, mas isto ninguém vê, nem eles querem ser vistos. E a facilidade da comunicação dos nossos dias é que faz com que saibamos tudo o que outros seres (des)humanos são capazes de fazer. Tudo é filmado, hoje, por alguém. Que bom. Precisamos de olhos atentos em todos os cantos prontos para denunciar violências de toda ordem. Precisamos de luz para intimidar esse beco escuro do medo e não tem problema se for a luz da câmera de um celular. Pronto para revelar injustiças nas ruas, em hospitais, onde for. Só peço: por favor, não peçam o fim dos médicos, como é costume fazer quando um policial erra e já se pede o fim da polícia etc. Não se julga um coletivo de grandes profissionais por algum bandido. Precisamos dos bons. Cada vez mais.


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