A experiência estética como experiência formativa: do belo ao ser

A experiência estética como experiência formativa: do belo ao ser

Ana Fonseca, escritora e professora de Filosofia na UFCSPA, resenha o livro "Psicagogia da experiência estética" para o Caderno de Sábado

Correio do Povo

Obra "O Viajante Sobre o Mar de Névoa", do artista alemão Caspar David Friedrich, que pertence à Coleção Kunsthalle de Hamburgo

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Há uma famosa entrevista de Antonio Cândido na qual ele defende a literatura como um direito humano por ser um bem indispensável para a nossa humanização. Segundo ele, é a literatura que realiza funções fundamentais para o nosso desenvolvimento. Marli Silveira concordaria com Antonio Cândido e lhe faria uma provocação. Não apenas a literatura, mas a experiência estética em suas diversas formas de expressão são experiências formativas que nos constituem enquanto indivíduos ao longo da vida e enquanto humanidade ao longo de milênios. Experienciamos o que nos toca não apenas fisicamente, e tais experiências nos forjam como um uno que compõem a coletividade. Em “Psicagogia da experiência estética: o sublime existencial” (República do Livro/Discurso Editorial, 2024), Marli Silveira retoma o ideal grego da paideia como formação para os valores da excelência (areté) a partir das ideias de belo e bom. E, desde já, adianto, eis um livro que você precisa ler!

Psicagogia significa etimologicamente “condução da alma”. Para os gregos antigos, e Marli Silveira cita especialmente Platão e Aristóteles, a estética era o instrumento por excelência para formação e condução da alma, o que remete à ideia da filosofia como uma forma de vida. O fantasma por trás desta ideia é a famosa expulsão dos poetas sugerida por Platão na Politeia, a república ideal conduzida por reis-filósofos e desprovida de poéticas metáforas. Tal condução da alma se daria para além do pensado no presente, o instante entre o que já foi e o que ainda não é. No instante atemporal, os textos antigos que chegaram até nós também compõem a presentidade. O próprio livro de Marli Silveira, lido com entusiasmo por mim em um passado recente e, por você, leitora ou leitor desta resenha, talvez, em um futuro próximo, contribui de modo sublime para nossa humanidade, pois ele é um duplo que nos provoca a pensar sobre o efeito das palavras em nós, em especial, as palavras que não decorrem de um “assim foi”, mas que, seguindo Martha Nussbaum, são sempre permeadas por um “assim poderia ter sido”. O efeito da possibilidade sobre nós é o da potência, efetivamente, possível, mas nem sempre realizada no mundo. E se a Filosofia, em certo sentido, é a arte de fazer perguntas, questionamos, juntamente com Marli Silveira, o que nos provoca sem ter sido. De modo que, a literatura é uma realidade irrealizável e que, ainda assim, nos constitui.

Ser humano e contar histórias se confundem. Desde as pinturas rupestres ou até mesmo antes delas de modo, talvez, irrastreável, os seres humanos aprisionaram em símbolos o que viram ou imaginaram. Nosso alfabeto e a língua portuguesa, na qual escrevo esta resenha, é simbólica, assim como o eram a escrita cuneiforme dos sumérios, a escrita egípcia antiga, com mais de dois mil símbolos, e tantas outras formas perdidas ou pouco conhecidas de expressão por símbolos. No presente, parte do mundo se pretende mais sintético.

Em português, dizemos muito com vinte e seis símbolos, desenhos que chamamos de letras e que nos permitem transmitir ideias. A despeito dos símbolos utilizados, e que hoje chamamos de alfabeto (latino, grego, cirílico, arábico), ou de ideogramas (chineses e japoneses, por exemplo), seres humanos os usam para contar histórias, mas não apenas isto. A humanidade conta histórias desde sempre para lembrar o que aconteceu, explicar fatos e sentimentos, e criar realidades. Muitas dessas histórias se perderam. Outras tantas, para nossa sorte, foram preservadas. São variadas e sucessivas experiências estéticas que, de modo ora mais ora menos intencional, forjaram e forjam gerações de seres humanos, o que, em última instância, forja o que se entende por humanidade.

A filosofia já foi considerada uma forma de vida e não apenas um discurso teórico. Sócrates é o filósofo por excelência a nos mostrar que as ideias valem tanto, que se deve defender com a própria vida o que foi defendido ao longo de toda a vida. Para os antigos, a filosofia era, de fato, uma maneira de viver por não haver separação entre pensamento e vida. Aos poucos, palavras deixaram de determinar ações, como se tão belas ideias pudessem ser guardadas em torres de marfim. De tempos em tempos, há quem escape de uma dessas torres e nos relembre que as palavras só têm razão de ser se sua essência corresponder ao viver. Não haveria, pois, o mero pensar sem que a ele correspondesse algo no mundo.

Poderíamos, ainda, provocar Marli Silveira com uma sucessão de perguntas para as quais sua psicagogia é uma instigante resposta. Por que contamos histórias? Como distinguir o contar de histórias ocorridas, que, por isso, recebem um “h” maiúsculo, História, do contar inventado, chamado de literatura? De que modo tais histórias nos afetam? Por que arte e sublime são conceitos tão intimamente imbricados? Como distinguir artesanato de arte? De que modo o conceito de utilidade pode ser resolver tal questão? Por que o fato de colocar algo sobre a mesa para servir uma comida ou na parede para enfeitar uma casa é tão decisivo para distinguir o artesanal de uma obra de arte? Será que os gregos também pensavam assim? Os muitos utensílios domésticos por eles produzidos têm sua utilização determinada por ornamentos? E ao contarem histórias em pratos estão produzindo literatura? Segundo Martha Nussbaum, “a boa literatura é o que permite ao leitor imaginar o que é viver a vida de outra pessoa”, um exercício de empatia cosmopolita que, segundo Marli Silveira, forja a vulnerabilidade existencial, isto é, humana, e, com isso, forja a própria humanidade. O que imaginamos ao olhar cada uma das lindas ilustrações escolhidas por Marli Silveira para ilustrar suas palavras? O que imaginamos ao olhar uma cerâmica grega antiga? De que modo isso nos constitui? E como uma resenha está fadada a estar aquém da obra resenhada? Aceitei o meu destino ciente de que me rendo às reflexões e provocações da bela obra de Marli Silveira. “Psicagogia da experiência estética: o sublime existencial” é uma obra que precisa ser lida.

Deixe-se provocar pelas suas inquietações assim como eu me deixei. E quando terminar o livro e não souber o que fazer aceite uma sugestão que parece simples: leia seu poeta preferido. Em seguida, faça para ele as mesmas perguntas que Marli nos faz: de que modo a literatura nos constitui, forja e transforma?

E agora, peço licença para ler Friedrich Nietzsche, filósofo a quem muitos tentaram desqualificar dizendo que escrevia “apenas” literatura. Tais “críticos” não entenderam que reconhecer algo escrito como literatura, e não “apenas” literatura, é um dos maiores elogios que se pode fazer a quem escreve, jamais uma crítica.

SERVIÇO:

Título: “Psicagogia da experiência estética”

Autora: Marli Silveira

Editora: Discurso Editorial/República do Livro

Ano: 2024

Páginas: 118

Lançamento: No Sarau Poético “Toda Poesia” do Leia Mulheres, em Santa Cruz do Sul. No dia 25 de maio, às 16h, no Vivento (rua Boa Esperança, 204).


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