A liberdade de James Joyce e além
Professor, ensaísta e tradutor Donaldo Schüler escreve no Caderno de Sábado sobre a obra maestra de James Joyce e o Bloomsday
publicidade
Eu disse Eu.
Diante da morte, ouve-se, no “Ulisses”, de Joyce, uma voz dizer: I said I – eu disse eu parte a unidade. Eu digo eu: eu produzo eu, eu narro eu, eu amo eu, eu detesto eu, viajo de eu a eu , delibero, concordo, discordo, o eu subsequente desperta e preserva eus anteriores. Eu recua ao passado no momento de ser proferido; residência do vivido, o eu dirige-se ao futuro no projeto. O eu se confronta com outros eus, avança conformado, rebelado, deformado, transformado. Na poesia de Fernando Pessoa, o eu se parte em quatro heterônimos ostensivos, entre outros menos ruidosos, no Ulisses de Joyce o autor se desdobra em dezoito estilos. Se o estilo representa o homem, como quer Buffon, o eu autoral se parte em dezoito eus, eus emergem em cada capítulo.
O desejo de viver
Stephen Dedalus inaugura o desfile pelas páginas do Ulisses com uma súplica dirigida a um fantasma: “Mãe, deixa-me ser, deixa-me viver”. Incorpore-se em mãe o passado político e literário. Para construir-se como escritor, Stephen terá que libertar-se do império que abraça o Globo, de uma tradição literária gigantesca que se avoluma desde Homero.
Libertar-se da mãe que o formou é ato revolucionário. A história acontecida no dia a dia deverá conduzi-lo a escrever. Stephen enfrenta a história como sujeito que não se sujeita. “A história é um pesadelo do qual tento despertar. ” – declara Stephen Dedalus. Para livrar-se das algemas do que já foi, Stephen deixa a escola dirigida por Deasy. O diretor instalou-se no que não se move, Dedalus debate-se com emergências vivas, cai da segurança para a aventura, repercute na queda do pedreiro Finnegan do “Finnegans Wake”, entra no rol de outras: a queda de Lúcifer, a queda de Adão, a queda de Roma, a queda nova-iorquina da bolsa de valores em 1929, a chuva diária dos homens em queda. A queda precipita do paraíso estático (sem sofrimento, sem morte) à sequência interminável do desgaste e da regeneração. Ana Lívia Plurabelle (ALP) rola da primeira linha à última do “Finnegans Wake”, morre e renasce no infindável fluir da vida. ALP devém desde o “blablablá” infantil ou do “bababadalghar”... que soa nas primeiras ondulações do primeiro dos dez trovões que de tempos em tempos abalam a prosa e o universo. Em palavras que em várias línguas significam trovão, ouve-se trovar: cantar, inventar, rememorar, desejar.
James Joyce distingue no Ulisses o monólogo masculino do feminino. O monólogo masculino é representado por Stephen Dedalus em conversa solitária com as coisas na beira do mar. No desejo de dominar, o inquieto indagador corta, despedaça para aprisionar o percebido em períodos curtos, embora as coisas lhe escapem como Proteu que, quando agarrado, se transformava em outro ser. Stephen luta com coisas nomeadas, enfrenta assinaturas para buscar o que se esconde atrás de palavras, a unidade de que deriva a pluralidade florescente. Tudo se move, tudo se evade. Sedento, Stephen busca o sentido esquivo além das coisas, além do alef e do alfa, além do alfabeto. Bate em nada, zero, origem de tudo. Prisioneiro do labirinto cósmico, o passado lhe é pesadelo, o presente se esvai, anda em busca do futuro construído pelo desejo.
A mulher diz sim.
Molly, a protagonista do monólogo feminino; falada desde o início do romance, passa a falar. Nomes desfilam espontaneamente sem preocupação de sugerir outro sentido além daquele que navega. Imagens vêm e vão. Ao dizer sim aos sentimentos, ela emerge como centro do universo romanesco. Assume posição crítica ante Bloom, analisa subterfúgios, critica atitudes infantis. Bloom nunca encontraria outra mulher que o aceitasse como ele é. Em torno de Molly giram Bloom, o empresário de Molly, a sociedade dublinense, o mundo. Como cantora, ela é sereia, atrai e destrói incautos. Geocêntrica é a estrutura de Ulisses.
A construção da mulher
Voltemos os olhos às mentes rebeldes de princípios do século XX, à revolucionária Virginia Woolf. A épica, por privilegiar homens, supera a lírica – pergunta Virgínia? Por que o cenário da guerra é mais importante do que ambientes domésticos? Virgínia destaca trivialidades culinárias que romancistas costumam ignorar. Interessam-lhe as folhas de outono em queda, sente-se atraída pela beleza perecível. A capacidade dos homens e das mulheres é a mesma. Liberdade intelectual repousa em base material; mulheres foram prejudicadas, faltou-lhes oportunidade para se exprimirem, escreviam em lugares inadequados, sujeitas a interferências de toda sorte. Como esperar que sejam criativas? Mulheres não se expressavam a contento porque as circunstâncias lhes eram adversas. Importa que cada um seja o que é e tenha ambiente para declará-lo. Faltam à mulher requisitos básicos para inventar. A mulher criativa não exige muito, um quarto silencioso e renda satisfatória é o bastante.
A liberdade na prosa de Clarice Lispector
A ficção de Clarice se confunde com a fluidez das águas e do vento. A narradora de “Perto do coração selvagem” se move em emoções inquietas. O corpo é uma caixa de ressonância. Palavras, ideias, imagens assumem a materialidade das coisas que a cercam. A narradora invade territórios para conhecer. O romance abre com o monólogo de Joana. A menina é uma consciência voltada para as coisas vividas no coração. No coração de Joana o mundo desfila recriado, sem causa nem efeito, sem antes nem depois. Sol, minhocas, galinhas deixam imagens na mesma tela. Materializam-se palavras, cheiros, paladares, ideias. No coração de Joana, reflexões e sensações convivem misturadas. O dia é um relógio que para e volta a andar ao movimento da corda. O tempo flui no coração de Joana. O pretérito existe como presente, desfila como vivido. Joana passa com as coisas que passam.
“Água viva” é romance epistolar. Interessam as relações da missivista com a vida. Assistimos ao borbulhar de palavras, de frases. Em lugar da síntese, recebemos sensações vagas, partidas. O prazer de criar se assemelha à exuberância da floresta caótica. Palavras aprofundam-se em busca das origens e retornam revigoradas para nomearem vagas fulgurações. Selvagem, a escrita evolui no movimento das sílabas e dos cipós. Nexos lógicos se desarticulam. Massas verbais escorrem ferventes como a lava. Se o texto é fugaz, fluida será a leitura. Ao contrário do eu disse eu, o eu se dissolve em sentimentos de vida e morte, um rosto vazio volta-se às águas, de todos e de ninguém, aprofunda-se em cósmica paixão narcísica, espalhada no ar, no mar, nas plantas. A história deixou de ser pesadelo porque o passado não é um tonel que acumula coisas. Presente, passado e futuro fluem no presente-água, nada acontece fora do fluir. O é de Clarice lembra o ser parmenídico vivo e ativo, move-se de nada a nada na alegria de ser. “E tudo isso eu ganhei ao deixar de te amar”, afirma a missivista. A narradora de “Água viva” rebela-se contra o amor que amarra, declara-se livre ou em vias de libertação. A liberdade está em dúvida porque tudo se move na dúvida. A liberdade é um processo ativo no presente fluido. No momento em que a narradora tenta agarrar o presente, o presente já foi e retorna no fluir. A energia vital não vem do eu, brota do isso, do aquilo anterior a quaisquer divisões, a quaisquer definições.
O narrar de Clarice não comporta a divisão joyciana entre discurso masculino ou feminino, pensar e sentir fundem-se no corpo em movimento.
BLOOMSDAY
Neste domingo, às 15h, na Feira do Livro Reconstrói RS, no Instituto Ling (rua João Caetano, 440), ocorre a mesa “Bloomsday: Ulisses - erudito ou popular?”, com o professor Donaldo Schüler, o grupo Irish Fellas e o ator João Petrillo interpretando Leopold Bloom.