A liberdade de James Joyce e além

A liberdade de James Joyce e além

Professor, ensaísta e tradutor Donaldo Schüler escreve no Caderno de Sábado sobre a obra maestra de James Joyce e o Bloomsday

Correio do Povo

"Ulysses", de James Joyce, foi publicado pela primeira vez em forma de folhetim, em The Egoist, cujo exemplar se encontra na John Rylands Library, de Manchester, na Inglaterra

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Eu disse Eu.

Diante da morte, ouve-se, no “Ulisses”, de Joyce, uma voz dizer: I said I – eu disse eu parte a unidade. Eu digo eu: eu produzo eu, eu narro eu, eu amo eu, eu detesto eu, viajo de eu a eu , delibero, concordo, discordo, o eu subsequente desperta e preserva eus anteriores. Eu recua ao passado no momento de ser proferido; residência do vivido, o eu dirige-se ao futuro no projeto. O eu se confronta com outros eus, avança conformado, rebelado, deformado, transformado. Na poesia de Fernando Pessoa, o eu se parte em quatro heterônimos ostensivos, entre outros menos ruidosos, no Ulisses de Joyce o autor se desdobra em dezoito estilos. Se o estilo representa o homem, como quer Buffon, o eu autoral se parte em dezoito eus, eus emergem em cada capítulo.

O desejo de viver

Stephen Dedalus inaugura o desfile pelas páginas do Ulisses com uma súplica dirigida a um fantasma: “Mãe, deixa-me ser, deixa-me viver”. Incorpore-se em mãe o passado político e literário. Para construir-se como escritor, Stephen terá que libertar-se do império que abraça o Globo, de uma tradição literária gigantesca que se avoluma desde Homero.

Libertar-se da mãe que o formou é ato revolucionário. A história acontecida no dia a dia deverá conduzi-lo a escrever. Stephen enfrenta a história como sujeito que não se sujeita. “A história é um pesadelo do qual tento despertar. ” – declara Stephen Dedalus. Para livrar-se das algemas do que já foi, Stephen deixa a escola dirigida por Deasy. O diretor instalou-se no que não se move, Dedalus debate-se com emergências vivas, cai da segurança para a aventura, repercute na queda do pedreiro Finnegan do “Finnegans Wake”, entra no rol de outras: a queda de Lúcifer, a queda de Adão, a queda de Roma, a queda nova-iorquina da bolsa de valores em 1929, a chuva diária dos homens em queda. A queda precipita do paraíso estático (sem sofrimento, sem morte) à sequência interminável do desgaste e da regeneração. Ana Lívia Plurabelle (ALP) rola da primeira linha à última do “Finnegans Wake”, morre e renasce no infindável fluir da vida. ALP devém desde o “blablablá” infantil ou do “bababadalghar”... que soa nas primeiras ondulações do primeiro dos dez trovões que de tempos em tempos abalam a prosa e o universo. Em palavras que em várias línguas significam trovão, ouve-se trovar: cantar, inventar, rememorar, desejar.

James Joyce distingue no Ulisses o monólogo masculino do feminino. O monólogo masculino é representado por Stephen Dedalus em conversa solitária com as coisas na beira do mar. No desejo de dominar, o inquieto indagador corta, despedaça para aprisionar o percebido em períodos curtos, embora as coisas lhe escapem como Proteu que, quando agarrado, se transformava em outro ser. Stephen luta com coisas nomeadas, enfrenta assinaturas para buscar o que se esconde atrás de palavras, a unidade de que deriva a pluralidade florescente. Tudo se move, tudo se evade. Sedento, Stephen busca o sentido esquivo além das coisas, além do alef e do alfa, além do alfabeto. Bate em nada, zero, origem de tudo. Prisioneiro do labirinto cósmico, o passado lhe é pesadelo, o presente se esvai, anda em busca do futuro construído pelo desejo.

A mulher diz sim.

Molly, a protagonista do monólogo feminino; falada desde o início do romance, passa a falar. Nomes desfilam espontaneamente sem preocupação de sugerir outro sentido além daquele que navega. Imagens vêm e vão. Ao dizer sim aos sentimentos, ela emerge como centro do universo romanesco. Assume posição crítica ante Bloom, analisa subterfúgios, critica atitudes infantis. Bloom nunca encontraria outra mulher que o aceitasse como ele é. Em torno de Molly giram Bloom, o empresário de Molly, a sociedade dublinense, o mundo. Como cantora, ela é sereia, atrai e destrói incautos. Geocêntrica é a estrutura de Ulisses.

A construção da mulher

Voltemos os olhos às mentes rebeldes de princípios do século XX, à revolucionária Virginia Woolf. A épica, por privilegiar homens, supera a lírica – pergunta Virgínia? Por que o cenário da guerra é mais importante do que ambientes domésticos? Virgínia destaca trivialidades culinárias que romancistas costumam ignorar. Interessam-lhe as folhas de outono em queda, sente-se atraída pela beleza perecível. A capacidade dos homens e das mulheres é a mesma. Liberdade intelectual repousa em base material; mulheres foram prejudicadas, faltou-lhes oportunidade para se exprimirem, escreviam em lugares inadequados, sujeitas a interferências de toda sorte. Como esperar que sejam criativas? Mulheres não se expressavam a contento porque as circunstâncias lhes eram adversas. Importa que cada um seja o que é e tenha ambiente para declará-lo. Faltam à mulher requisitos básicos para inventar. A mulher criativa não exige muito, um quarto silencioso e renda satisfatória é o bastante.

A liberdade na prosa de Clarice Lispector

A ficção de Clarice se confunde com a fluidez das águas e do vento. A narradora de “Perto do coração selvagem” se move em emoções inquietas. O corpo é uma caixa de ressonância. Palavras, ideias, imagens assumem a materialidade das coisas que a cercam. A narradora invade territórios para conhecer. O romance abre com o monólogo de Joana. A menina é uma consciência voltada para as coisas vividas no coração. No coração de Joana o mundo desfila recriado, sem causa nem efeito, sem antes nem depois. Sol, minhocas, galinhas deixam imagens na mesma tela. Materializam-se palavras, cheiros, paladares, ideias. No coração de Joana, reflexões e sensações convivem misturadas. O dia é um relógio que para e volta a andar ao movimento da corda. O tempo flui no coração de Joana. O pretérito existe como presente, desfila como vivido. Joana passa com as coisas que passam.

“Água viva” é romance epistolar. Interessam as relações da missivista com a vida. Assistimos ao borbulhar de palavras, de frases. Em lugar da síntese, recebemos sensações vagas, partidas. O prazer de criar se assemelha à exuberância da floresta caótica. Palavras aprofundam-se em busca das origens e retornam revigoradas para nomearem vagas fulgurações. Selvagem, a escrita evolui no movimento das sílabas e dos cipós. Nexos lógicos se desarticulam. Massas verbais escorrem ferventes como a lava. Se o texto é fugaz, fluida será a leitura. Ao contrário do eu disse eu, o eu se dissolve em sentimentos de vida e morte, um rosto vazio volta-se às águas, de todos e de ninguém, aprofunda-se em cósmica paixão narcísica, espalhada no ar, no mar, nas plantas. A história deixou de ser pesadelo porque o passado não é um tonel que acumula coisas. Presente, passado e futuro fluem no presente-água, nada acontece fora do fluir. O é de Clarice lembra o ser parmenídico vivo e ativo, move-se de nada a nada na alegria de ser. “E tudo isso eu ganhei ao deixar de te amar”, afirma a missivista. A narradora de “Água viva” rebela-se contra o amor que amarra, declara-se livre ou em vias de libertação. A liberdade está em dúvida porque tudo se move na dúvida. A liberdade é um processo ativo no presente fluido. No momento em que a narradora tenta agarrar o presente, o presente já foi e retorna no fluir. A energia vital não vem do eu, brota do isso, do aquilo anterior a quaisquer divisões, a quaisquer definições.

O narrar de Clarice não comporta a divisão joyciana entre discurso masculino ou feminino, pensar e sentir fundem-se no corpo em movimento.

BLOOMSDAY

Neste domingo, às 15h, na Feira do Livro Reconstrói RS, no Instituto Ling (rua João Caetano, 440), ocorre a mesa “Bloomsday: Ulisses - erudito ou popular?”, com o professor Donaldo Schüler, o grupo Irish Fellas e o ator João Petrillo interpretando Leopold Bloom.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895