A seiva poética de Ana dos Santos
A escritora, poeta e musicista Lilian Rocha analisa o livro “Maiúscula”, de Ana dos Santos, que terá lançamento neste sábado, às 17h30min, na Bamboletras
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A poetisa (como prefere ser nomeada), escritora, professora de Literatura Brasileira e pesquisadora Ana Dos Santos (com D maiúsculo), presenteia-nos com o seu mais recente livro “Maiúscula”, pela Editora Libretos.
O livro nos impacta na beleza da edição da capa, um coração vivo, pulsante, florido, colorido, ecológico, com veias e artérias. Uma seiva Maiúscula na grandiosidade e no pulsar poético que a vida insiste em nos proporcionar.
Na abertura, Ana realiza uma mulheragem à sua mãe Iolanda, professora e espelho, que faleceu no ano de 2023, durante o processo de criação do livro. Ali, Ana já demarca a importância e a valorização na sua escrita da trajetória de mulheres negras. Apresenta-se de forma poética e musical, durante todo o livro encontramos citações e referências contemporâneas, que enriquecem a construção de seus poemas.
Na apresentação, comprovamos a que veio essa pesquisadora: “... afinal sou pesquisadora de universidade pública, só mais uma preta latino-americana tentando viver de literatura em um país colonizado.”
O livro está dividido em três capítulos: “Escrevo, uns versos, depois rasgo”, “Pérola Negra” e “Afro Disíacas”. O primeiro traz a dinâmica de vida e morte, o medo da finitude, alguns poemas desse capítulo foram produzidos durante a pandemia de Covid-19, a exemplo do poema O Estrondo do Silêncio: “... eu também já perdi/ a conta/ dos que talvez/ sobreviverão/ ao estrondo/ do abandono/ do silêncio/ e da solidão...”.
O mistério do título “Maiúscula” aparece como uma voz interna, plena de sentido nos versos “... A Maiúscula ficou observando/ e disse: cuide de você/ e seja a sua própria mãe...”. O capítulo revela poemas ritmados, com muitas figuras de linguagem, com citações musicais (quase conseguimos ouvir as melodias), como nos versos “...Me acorda/ com as tuas mãos/ envoltas no meu corpo/ Sou tua/ toda tua/ meu amor/ Você deságua em mim/ e eu oceano.”, citando Djavan em um poerótico.
Mas a poetisa persiste na luta pela vida em plena pandemia através dos versos “...insisto/ persisto/ e sou.” A rima preciosa também podemos encontrar, como nos versos do poema Clariciana: “Das entranhas vem a dor/ Nas entranhas faço amor/ Essa estranha que eu sou/ que no fundo se afogou/ é bem no fundo/ na no fundo/ na descoberta do mundo”.
A escrita é contundente, realista, mas ao mesmo tempo singela sem perder o lirismo. perder o lirismo. O segundo capítulo navega por mares negros, o título lembra a canção de Luiz Melodia, Pérola Negra, afirmando o pertencimento a uma comunidade afro diaspórica. A poetisa pede permissão para abrir os seus caminhos com o “Poema das Sete Encruzilhadas”, com os versos “Quando nasci, um anjo mensageiro/ com axé de fala/ disse: Vai, Ana, ser poetisa na vida...”. Na religião de matriz africana o símbolo encruzilhada é cheio de significados, é onde se abre os caminhos, quem tem o axé de fala é o mensageiro e tem um propósito.
A mensagem da temática abordada é não esquecer a Travessia do Atlântico Negro, mas que como Sankofa (ideograma africano) olha para trás para poder seguir em frente renovado. Como o excelente poema Não Esquecerei, nos versos “...Eu lembro da África/ antes da divisão, / antes da espoliação, / antes do assassinato do meu povo. / Eu lembro. / Eu não esquecerei/ que nasci em Wakanda...”.
Os poemas traduzem o luto e o renascimento provocados na população afro-brasileira e a Mãe África sempre em lugar de destaque. A pesquisadora Ana Dos Santos não romantiza a travessia, mas escancara a dor, as mortes, os assassinatos, assim como ressalta a importância dos sobreviventes na construção de nosso país.
Encontramos poemas com citações importantíssimas da verdadeira Magia Negra: Cruz e Sousa, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis, Grada Kilomba, Chadwick Boseman e tantas outras e outros espelhos de conhecimento e resistência negra. Jamais esquecendo a ancestralidade, como diz “... saudade é palavra africana, mas dizem que é portuguesa.” Ou ainda nos versos: “...Mãe, me liberta! / Bendita é o fruto da nossa mente! / Bendita é a nossa voz!”.
O terceiro capítulo nos traz a configuração poética que é uma das marcas da poetisa, os seus poeróticos, como nos seus livros anteriores, Poerotisa e Pequenos Grandes Lábios Negros, o prazer libertário que durante muito tempo foi negado para as mulheres, o gozo sem pudor.
“Afro Disíacas” abre com uma citação de Carlos Drummond de Andrade: “mas, varado de luz, o coito segue”, continua com versos que nos mobilizam, como “...Respiro teu cheiro/ impregnado/ no meu corpo...”. A poetisa lembra “não se escreve impunemente/ quando se é uma mulher negra.”, versos que demonstram a sua preocupação com as perspectivas que abarcam gênero/ raça.
Nesse capítulo, encontramos o emblemático poema Clitóri-se, mulher! Um brado de amor ao corpo feminino, um grito libertário, alguns versos: “... Clitóri-se, mulher! / Diante do espelho, / se olhe, / se toque, / se ame...”.
‘Maiúscula” é um livro que emerge do mar revolto navegado pela escritora durante vinte anos de vida literária., com uma linguagem poética Maiúscula e Madura, com alguns poemas já publicados em outros livros e revistas literárias, as citações e referências que permeiam os poemas confirmam o profundo interesse da pesquisadora em revelar o presente sem esquecer o passado, o que demonstra um gosto musical apurado e uma aptidão de leitora e por vezes crítica. Muitos poemas foram produzidos durante a pandemia do vírus da morte, mas o medo não paralisou a autora, nem mesmo no seu momento de maior envolvimento de produção acadêmica. O livro é o reflexo do momento criativo de Ana Dos Santos, uma professora, mãe, preta com Kronos e Kairós o tempo todo em conflito, como nos versos: “Não há tempo hábil/ para a poesia...”.
Ela traz as suas digitais poéticas, que são as temáticas do ser mulher e negra em um mundo que lhe nega a existência, uma pesquisadora com referências invisibilizadas no meio acadêmico e uma observadora crítica da sociedade que vivemos com um lirismo único, peculiar e enegrecido na morte/ vida/ gozo/ renascimento da sua escrita. Ana mostra o seu mundo subjetivo como uma janela de inquietações contemporâneas com poemas consistentes e ricos de imagens.
“Maiúscula” pulsa a cada respiro com calma, inteireza e emoção, a poesia flui do livro para o leitor, assim como a seiva poética de Ana Dos Santos proporciona nutrição. Boa leitura!
SERVIÇO
- Lançamento de “Maiúscula”, da poetisa, escritora, professora de Literatura Brasileira e pesquisadora Ana Dos Santos. Antes dos autógrafos, haverá um sarau poético.
- Onde: Bamboletras (Venâncio Aires, 113)
- Quando: Sábado, 13 de julho, às 17h30min.
- Editora: Libretos
- Páginas: 104
- Ano: 2024.