Caderno de Sábado

Caio Fernando Abreu: costurando para fora

Jornalista, produtora editorial, mestre em Literatura Comparada pela Ufrgs, Flávia Cunha, destaca, em artigo para o Caderno de Sábado, a trajetória do autor pelo jornalismo e a influência da profissão em sua literatura

Caio Fernando Abreu, que morreu em 25 de fevereiro de 1996, completaria 76 anos no próximo dia 12 de setembro
Caio Fernando Abreu, que morreu em 25 de fevereiro de 1996, completaria 76 anos no próximo dia 12 de setembro Foto : Sandra La Porta / Divulgação / CP Memória

A data de 12 de setembro é emblemática para os apreciadores do legado literário de Caio Fernando Abreu. Foi neste dia, em 1948, que o autor nasceu, no município gaúcho de Santiago do Boqueirão. Mas o “escritor da paixão” - como uma vez foi descrito por Lygia Fagundes Telles - era um nômade, por natureza. Jovem, veio para Porto Alegre estudar. Também morou durante muitos anos em São Paulo, teve temporadas no Rio de Janeiro, além de ter acumulado à sua bagagem cultural algumas incursões europeias.

Pois foi justamente o desejo de respirar novos ares que levou Caio F. - codinome que costumava adotar em cartas assinadas a amigos - a ter uma segunda profissão, além de escritor. O trabalho na imprensa veio cedo, em 1968, dois anos antes da publicação de seus primeiros livros “Limite branco” e “Inventário do irremediável”. A estreia jornalística de Caio foi em grande estilo, na capital paulista, participando da primeira equipe da Veja, revista semanal que, na época, trouxe inovações ao estilo e técnicas de reportagem no Brasil.

Neste período, começa uma sensação que deve acompanhar o autor por quase toda a vida: a angústia em relação a ser jornalista. A amigos próximos, reclamava, com constância, sobre os prazos e exigências das funções exercidas em veículos de comunicação. Para ele, este trabalho roubava o tempo para sua verdadeira vocação: a Literatura.

Apesar disso, ele reconhecia os ensinamentos que o jornalismo trouxe para sua escrita:

“O jornalismo me ajudou um pouco a secar a forma, eu sempre tive a tendência a ser excessivo. Com 18, 19 anos eu fui para SP para a formação da primeira equipe da revista Veja e tivemos um curso de jornalismo que era dado principalmente pelo Mino Carta, e ele insistia muito nisso: dizia que eu tinha que secar, encurtar as coisas, enxugar o texto.” (Fonte: Para sempre teu, Caio F. Conversas, cartas, memórias de Caio Fernando Abreu, Paula Dip, Editora Record, 2009, p. 125)

Depois da atuação na capital paulista, na Veja, em 1971 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como pesquisador e redator das revistas Manchete e Pais & Filhos. Retorna a Porto Alegre, após ter sido acusado de porte de drogas, em um flagrante forjado, provavelmente pelo envolvimento do escritor com passeatas contra o regime militar.

De volta ao Rio Grande do Sul, Caio retoma a atuação na imprensa. Conciliava a publicação de contos, como fez no Correio do Povo, em diversas ocasiões, com trabalhos de redator, copidesque, revisor e, eventualmente, repórter. Em entrevista à Folha da Tarde, jornal com grande credibilidade junto ao meio cultural gaúcho, na reportagem Quem pode viver da literatura? Pouca gente, publicada em 2 de janeiro de 1973, Caio garante que “fazer outra coisa [além de escrever] é se prostituir.” e garante sobreviver apenas do seu trabalho literário.

Porém, apesar da declaração para esta matéria, sabe-se, por registros como cartas do próprio escritor, que, nesta época, Caio trabalhava na imprensa porto-alegrense e também no Suplemento Literário de Minas Gerais. Uma das hipóteses possíveis para ele ocultar esta atuação seria por considerar algo “menor” do ponto de vista textual.

Apesar disso, o trabalho de Caio na imprensa foi constante, em diferentes funções. Em 1977, foi crítico teatral na Folha da Manhã, outro jornal ligado à Caldas Jr.. Em uma destes textos, publicado em 4 de julho daquele ano, o autor enfatiza, no trecho inicial, a dificuldade de fazer crítica teatral em uma cidade como Porto Alegre, em que todas as pessoas ligadas à área cultural se conhecem. Continua sua análise falando sobre o espetáculo “O Ator”, que estava em cartaz no Clube de Cultura, no bairro Bom Fim, com direção de Álvaro Varela. O texto de Caio é bastante direto ao enfatizar as fragilidades da peça teatral:

“‘O Ator’ é evidentemente um trabalho imaturo e irregular. Evidentemente porque seu autor, diretor e um dos atores, por sua pouca idade, tem uma experiência mínima tanto de teatro quanto de vida.”

A atuação nesta função jornalística parece ter marcado a vida de Caio tão profundamente a ponto de ter servido de inspiração para um de seus personagens mais emblemáticos: Pérsio, do conto “Pela Noite”, publicado em “Triângulo das Águas”. (Livro agraciado com o Jabuti de 1984, prêmio literário mais reconhecido no Brasil).

No trecho a seguir, Pérsio desabafa sobre as agruras do trabalho de crítico teatral durante um jantar, após o integrante de uma companhia de teatro aproximar-se do protagonista e pedir auxílio para divulgação de um espetáculo:

“- Bosta, bosta de profissão. Sabe o que eu fiz ontem à noite? Gastei três laudas demolindo impi-e-do-sa-mente a tal Antígona. Principalmente o coro. Que parece sofrer de descontrole motor, com tantas acrobacias físicas. Que não decorava o texto. Que devia voltar a fazer teatro infantil daquele bem debiloide, cheio de oncinhas. Que Antígona, quem diria, acabou na Mooca. E eu que até gostava de teatro. Estou pegando bode para sempre, vejo um palco e quero sair batendo em todo mundo. O coro tem pelo menos vinte pessoas. São vinte inimigos, já pensou?” (Fonte: Triângulo das águas, Caio Fernando Abreu, Editora Agir, 2008, p. 164/165)

A inspiração pela atuação na imprensa também pode ser observada no romance Por Onde Andará Dulce Veiga, publicado em 1990, com o protagonista sendo um repórter que volta à rotina jornalística trabalhando “no talvez pior jornal do mundo”. Sua ironia ia além da ficção. Na vida real, chamava os trabalhos na sua segunda profissão de “costurar para fora”.

Ainda assim, amigos próximos de Caio consideram que as reclamações faziam parte de sua personalidade, considerada dramática. Este ponto de vista aparece em muitas das entrevistas que fiz para a minha dissertação de mestrado na Pós-Graduação da Letras na Ufrgs, há cerca de 10 anos. O jornalista Juarez Fonseca considera que o escritor, no fundo, gostava de atuar na imprensa:

“Ele frequentemente era impiedoso com tudo, não só com o jornalismo. O jornalismo era só uma das irritações dele. Mas às vezes, ele gostava. Em alguns momentos, ele gostava. Tanto é que ele continuou nisso. Foi para São Paulo, trabalhou em redações importantes, conviveu com uma geração importante do jornalismo.”

A vertente jornalística de Caio Fernando Abreu ainda merece um estudo acadêmico mais aprofundado, conforme especialistas na obra do escritor. Um exemplo de como o legado de Caio na imprensa segue em alta é “Caio em revista”, espetáculo solo encenado pelo ator Roberto Camargo, dirigido por Luís Artur Nunes, que entrou em cartaz em 2024, em São Paulo.

Em Porto Alegre, no dia 12 de setembro, os fãs do escritor poderão ter acesso a mais detalhes sobre a sua trajetória jornalística na palestra “Costurando para fora - a trajetória jornalística e sua influência na Literatura de Caio Fernando Abreu.” A atividade, com contribuição espontânea, será realizada a partir das 19h, na Livraria Baleia. (rua dos Andradas, 351, Centro Histórico).

SERVIÇO

  • A Livraria Baleia (Andradas, 351) promove na quinta, 12 de setembro, às 19h, uma atividade gratuita em homenagem a Caio Fernando Abreu, na data de seu aniversário. “Costurando para fora - a trajetória jornalística de Caio Fernando Abreu e sua influência na literatura” será realizado pela jornalista e produtora cultural Flávia Cunha. A atividade é baseada nas pesquisas de Flávia para a dissertação de mestrado no mestrado em Letras na Ufrgs. A pesquisadora vai mostrar como a faceta jornalística de Caio influenciou seus textos literários.