Como Quintana acolheu um jovem poeta
Escritor, crítico, poeta e ensaísta Armindo Trevisan fala da generosidade de Mario Quintana no início de sua carreira literária
publicidade
Eu acabava de participar de um “Concurso Literário”, promovido por uma companhia de combustíveis, a Sagol. Creio que o concurso foi instituído em dezembro de 1957. O concurso abrangia os seguintes gêneros: poesia, ficção, crônica, e outros gêneros, dos quais não me recordo. O prêmio final em ficção coube a Lothar Hessel, um historiador, que concorreu com seu romance: “Brava Gente”.
Minha decepção foi grande. Com a vaidade própria e borbulhante da idade, julgava merecer, ao menos, uma menção honrosa em poesia. Em compensação, os membros da Comissão Julgadora, entre os quais estavam Mario Quintana e Érico Verísssimo, conferiram-me uma “Menção Honrosa” em ficção, por minha coletânea de contos: “A Uva que Ficou na Vinha”. Era contos sobre uma temática gringa – a italiana – que tinham mais feição de “brincadeiras imaginativas”, do que de peças ficcionais com princípio, meio e fim.
Dessa “Menção Honrosa” resultou meu conhecimento pessoal (e a consequente amizade) de dois grandes vultos de nossa literatura. O primeiro deles, Érico Veríssimo, que conheci no segundo andar da Livraria do Globo, onde estava aparando os cabelos, sentado diante de um profissional. Depois de breve conversa, atrevi-me a pedir-lhe o endereço do Quintana. Erico desconhecia-o. Sugeriu-me que o pedisse ao Nilo Tapecoara (Brasil Berutti) da secção do Correio do Povo: “Do bric-à-brac da vida”, a coluna mais lida do jornal.
O Sr. Beruti forneceu-me o endereço do Poeta: o de de uma Pensão na Rua Dona Laura, dirigida por uma senhora ainda jovem, casada com um pedreiro. Fui recebido cortesmente pela mencionada senhora. Ela informou-me que o Poeta estaria, por volta das onze horas, num Bar das imediações. Encontrei, efetivamente, Quintana no Bar citado.
O difícil foi aproximar-me dele. Para mim, que o lia religiosamente cada domingo, no seu “Caderno H”, e o considerava (como ainda o considero) um dos maiores poetas do Brasil e da América Latina, devido sobretudo à sua coletânea de sonetos, até hoje não igualada (ou só igualada por poucos, Jorge de Lima e Vinícius de Morais), “A Rua dos Cataventos”, foi terrível abordá-lo.
Eu temia ser repelido pelo poeta, que poderia considerar-me um importuno. Com muita “humildade”, acerquei-me de Quintana. Saudei-o, e depois de fazer-lhe breve elogio, perguntei-lhe “se podia” dar uma olhada nas minhas “poesias” (que tentavam assemelhar-se às poesias do próprio grande poeta).
Será que alguém ainda se lembra dos quartetos de Quintana, de seu livro Espelho Mágico (Porto Alegre, Globo, 1951),com apresentação de Monteiro Lobato?
Até agora, só encontrei um crítico que valorizou essa coletânea. Transcrevo alguns dos poemas desse livro, que nunca deixei de apreciar, incluindo alguns na antologia, que Tabajara Ruas, Dulce Helfer e eu, publicamos com o título “O Melhor de Mario Quintana”(Segunda edição. Porto Alegre, Editora AGE, 2016).
Eis o tipo de poesia que Quintana compunha na época:
XCVI. Dos Hóspedes.
Esta vida é uma estranha hospedaria,
de onde se parte quase sempre às tontas,
pois nunca as nossas malas estão prontas.
e a nossa conta nunca está em dia.
Vejamos outro quarteto:
XII. Das Utopias.
Se as coisas são intangíveis...ora!
não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, senão fora
a mágica presença das estrelas.
Quintana consentiu em dar “uma olhada” em meus poemas, que eu tinha reunido, dactilografados, num volume encadernado. O Poeta foi folheando as páginas, devagar. De quando em quando, fixava-se num poema, e dizia: ”Este“poeminha está bom!” Com tais palavras, ou outras, destacou alguns quartetos.
No fim, ele silenciou.
Perguntei-lhe:
-Dá para continuar?”
Com meio sorriso, ou algo que me pareceu assim, Quintana acrescentou:
- Acho que podes continuar a compor poemas!
Despedi-me do Poeta com emoção. Pensei comigo: “Quintana, o grande Poeta, achou que eu poderia ser poeta!”
Esse encontro - e o elogio de Clarice Lispector, mais tarde, sobre minha obra de estreia: “A Surprêsa de Ser”, que ela leu antes de eu ser premiado no Rio de Janeiro por Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Cassiano Ricardo, enviando-me um telegrama com as palavras: “Livro belíssimo” - foram os elogios mais valorizados pelo aprendiz-de-poeta, que ainda sou. Nunca mais experimentei a emoção de ser autor com tanta singeleza e alegria.
Gostaria, neste momento, em que estou nonagenário, depois de publicar mais de 15 coletâneas de poemas, que um leitor, qualquer dos meus leitores, pudesse honrar-me com a passagem que vou citar, de uma carta de Paulo Mendes Campos a Quintana:
- Alguns de teus poemas e muitos dos teus versos não precisam estar impressos em tinta e papel: eu os carrego de cor e, às vezes, brotam espontaneamente de mim como se fossem meus, e hás convir que a glória maior do poeta é conceder essas parcerias anônimas pelo mundo.
O Rio Grande do Sul possui, ao menos, quatro gênios: João Simões Lopes, Dionélio Machado, Érico Veríssimo e Mário Quintana.
Temos, indiscutivelmente, outros grandes vultos literários, como Eduardo Guimarães, Paulo Correia Lopes, Filipe de Oliveira, Alcides Maia, Vianna Moog, Augusto Meyer, Moacyr Scliar, Luis Antônio Assis Brasil, Sérgio Faraco, Lya Luft, Tabajara Ruas, Carlos Nejar, e outros.
Creio, porém, que Mario Quintana demorou a ser conhecido – não como humorista fino, que ele sempre foi - mas como um grande lírico, de porte internacional.
Quando João Cabral de Melo Neto esteve no Rio Grande do Sul, e eu tive o prazer de acompanhá-lo em sua visita, ele me disse que considerava Quintana “um dos maiores líricos da América Latina”. Dito por Cabral, tal elogio equivale a uma “Canonização” de um fiel católico por um Papa.