“Dias de Água" em 1941

“Dias de Água" em 1941

O Caderno de Sábado publica trechos extraídos de dois capítulos do romance “Dias de Água” (Casa 29, 2021, 276 páginas), de autoria do jornalista e escritor Luís Dill, que foi ambientado na enchente de 1941

Correio do Povo

Enchente de 1941 no centro de Porto Alegre

publicidade

Moysés Ibaiguren alcançou a Rua Botafogo com dificuldade. O Menino Deus e a Azenha tinham diversas ruas inundadas, em algumas, os carros já não passavam, as vias eram agora arroios. Parou diante do número 252. Tocou a campainha.

Glória Wilke veio atender, impecável em seu uniforme preto com babados brancos e o cabelo contido pelo coque. O fotógrafo desejava falar com Alfonso Argenta. Ele deixou o guarda-chuva escorado no lado de fora e a seguiu até o gabinete do advogado.

- O senhor aceita um cafezinho? Ou mate?

- Cafezinho, se não der trabalho.

Ela saiu. O fotógrafo observou as prateleiras, os livros, o tapete e as cortinas. Nada entendia sobre decoração, mas nenhum dos enfeites entraria em sua casa, exceto pelo Junghans sobre a enorme mesa de imbuia.

- Bom dia, bom dia.

- O fotógrafo ergueu-se rápido, cumprimentou Alfonso. Ele vestia croisé cinzento com gravata preta, estava bem-disposto.

- Soube que as águas atingiram o seu Diário de Notícias

- Sim, senhor, é enchente sem precedentes e contou como boa parte da Rua da Praia já fora inundada e como tiveram de construir trapiche para os funcionários entrarem no prédio da prefeitura.

O advogado sentou-se com gemidos em sua poltrona e ficou ouvindo os relatos do fotógrafo. Ele, na verdade, lhe caíra do céu. Precisava encomendar fotografias da tal Adalmira Lang. Ordem de sua cliente Engracia Lohweg.

A criada apareceu, pediu licença e depositou a bandeja de prata sobre o tampo da mesa. Deixou o cafezinho diante do fotógrafo e a cuia e a chaleira próximas ao patrão. Retirou-se. Seu com licença foi inaudível. Alfonso bebeu com gosto. Nunca vira ninguém aprontar o chimarrão com tamanha destreza.

- Mas conte, meu amigo. O que o traz a essa parte inundada da cidade?

O fotógrafo sugou o café com ruído antes de falar.

- Tenho comigo uns aspectos. Com certeza interessam o senhor - puxou o envelope do interior do paletó já fatigado pelo uso.

O advogado largou a cuia com a antecipação do prazer. Apanhou o maço.

- O senhor leu sobre os crimes na Luciana de Abreu?

- Oh, sim - pinçou sete fotografias.

A polícia já estava lá, infelizmente. Por isso foi impossível ângulos melhores.

Doroti aparecia sentada, nua, a cabeça pendida sobre o peito. Os seios eram bem visíveis, mas o baixo ventre não: o joelho direito jazia em leve dobradura, possibilitando apenas a visão do umbigo para cima.

A cortina foi coisa do Lourival, ele colocou sobre os seios.

- Está bom. E o legista?

- Ele é um cacete, não me dá colher de chá.

Alfonso retomou a cuia. Já comprara materiais melhores, mas não eram feias. O sangue sempre o incomodava, preferia mortas sem sangue.

(....)

Estava cansado e suas roupas fediam da umidade. Moysés Ibaiguren temia o tifo e a leptospirose, trabalhando em meio às águas pútridas. O que seria dos seus filhos? A mulher daria conta? A Praça XV ilhada pelo Guaíba. Um motorneiro lhe dissera que quando o rio sobe desse jeito, nunca volta ao normal; que vinham tentando domar o Guaíba há alguns anos com a construção do porto; e que agora ele dava o troco.

Apanhou uma gasolina e foi ao meio do Guaíba fotografar os navios chegando com mercadorias, garantindo, assim, o abastecimento dos porto alegrenses. Registrou os estragos na Ilha da Pintada. Os destroços dos casebres flutuavam aqui e acolá. Viu pequenas palafitas ainda em pé, gente pedindo ajuda, empréstimos do governo para se reerguer.

Ordenou ao capitão apontar a proa para o Navegantes e viu o bairro submerso. Ruas, avenidas, fábricas, residências, a igreja, tudo violado pelas águas amarelas, alguns imóveis com dois metros de água, outros com 80 centímetros ou mais. Encontrou um gato preto jovem e magro nos galhos do ingazeiro. Ficou bons 10 minutos ali até conseguir enquadrar o desespero do animal. O bichano miava pedindo ajuda, mas ninguém no barco se animou. Seria preciso se aproximar, alguém entrar na água e depois subir na árvore.

O fotógrafo mandou tocar em frente.

Moysés subiu em prédios altos no Centro, de onde conseguiu flagrar de modo didático os efeitos da enchente. Mercado Público, Prefeitura, o chalé da Praça XV, o Guaspari, a Livraria do Globo, o abrigo dos bondes, tudo consumido pelas águas. Ficavam dos aspectos questionamentos sombrios: as estruturas suportariam? Ainda seriam habitáveis? Um engenheiro sentenciara: dado os mais de 70 anos do Mercado Público, seu tombamento seria certo, afinal quando e se as águas baixassem, as fundações estariam comprometidas de modo irreversível.

Enquanto revelava as fotografias, Moysés Ibaiguren imaginou-as eternizadas em livro. Apresentaria a ideia ao Erico Verissimo, com quem já conversara em evento da Associação Riograndense de Imprensa. Recém-chegado dos Estados Unidos, deveria estar ocupadíssimo. Então era mais negócio pedir ao Reynaldo Moura, outro autor de suas relações. Talvez ele pudesse interpretar e descrever o que se escondia por trás das imagens. Narrativa e registro fotográfico do espantoso flagelo que assolou o Rio Grande do Sul.

Seria um bom título?

Saiu do laboratório e acendeu um cigarro. Foi ver o entardecer. A chuva persistia. Moysés lembrou do gato preto.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895